Livros e Livres,

Como nenhum outro

Dirigido e estrelado por Paul B. Preciado, documentário convoca Virginia Woolf para falar de transição de gênero em chave poética

01jan2024 | Edição #77

Às vezes assistimos, no cinema e na vida, ao nascimento de alguma coisa, mas raras são as ocasiões em que conseguimos ter consciência disso. O sentido de crítica e a própria percepção carecem de distanciamento histórico e temporal, dificultando a identificação e a incorporação do inédito.

Tal dificuldade não se verifica em Orlando, a minha biografia política, premiado documentário de estreia de Paul B. Preciado, que chega aos cinemas do Brasil quase um ano depois do lançamento em Berlim, onde ganhou o primeiro reconhecimento da longa lista que se seguiria festivais afora.

Nessa incursão no cinema, Paul B. Preciado, homem trans, parte da pergunta que certa vez ouviu (“por que você não escreve a sua biografia?”) como provocação para uma contundente resposta: “porque a filha da mãe da Virginia Woolf já a escreveu em 1928”. Orlando, a minha biografia política é uma carta-resposta ao livro, endereçada à autora após a sua morte, o que faz sentido por Woolf também saber que “a vida começa antes da vida”. 

Em um documentário ensaístico, Preciado dialoga com o romance, desmembra-o, cita-o, critica-o, escrutina-o. Sua gênese criativa dá novas cores à “mais elástica das formas documentais” cinematográficas, como foi definida há uma década em artigo incontornável da revista Sight and Sound. Está lá: “É crucial notar que o ‘filme de ensaio’ não é apenas uma denominação pós-facto para um tipo de prática cinematográfica, mas também uma invenção e uma intervenção”.

Ao conjugar adaptação literária, narração que transita da primeira pessoa ao plural, performance artística, ativismo, números musicais, ficção e poesia, Preciado cria um documentário que, sem verniz experimental, inaugura possibilidades para o cinema. Dividindo autoria e voz com mais de vinte “Orlandos”, o discurso se intercala e se encontra em corpos de homens e mulheres trans de idades distintas, que passam de mão em mão trajetórias de luta comum, provando que “cada vida individual é uma história coletiva”. No livro de Woolf, o tema é a continuidade do indivíduo, que resiste, através de mais de três séculos, à força destrutiva do tempo.

O conceito de existência e identidade sem limite temporal demarcado no espaço biográfico é fundamental para se perceber a riqueza temática do filme. A narrativa está lá antes de existir, intercala e extrapola camadas discursivas, referenciais e históricas, disfarçando a aparentemente despretensiosa sofisticação do que estamos a ver. 

Viver mais na ficção do que na realidade é condição comum a todos os que pertencem às minorias

A total inconsciência sobre como fazer um filme, forma midiática na qual até então julgava impossível se aventurar pela dimensão de “mainstream”, acabou por levar Preciado a algo novo. Ao olhar uma coisa pela primeira vez, pôde experimentar e inventar a liberdade que pensava faltar ao cinema, encontrando no filme de ensaio um meio suficientemente aberto para comportar a complexidade poética e visual da história que queria contar.

Num certo sentido, é possível pensar que o filme de ensaio é a subforma que extrapola o “binarismo” historicamente limitador do cinema documentário e de seus debates ontológicos: ali se anulam as velhas dicotomias de realidade e ficção, observador e personagem, sujeito e objeto, e o formato  se expande para permitir que outras artes, como a literatura, se inscrevam no plano fílmico com todas as referências necessárias para as representar.

Realidade e ficção

Orlando, a minha biografia política não deixa entretanto de ser um documentário pintado com as tintas da ficção, e isso faz ainda mais sentido quando ouvimos Preciado falar que consideravelmente cedo em sua vida a ficção se tornou mais importante do que a realidade, o que se deve à descoberta do livro de Woolf na adolescência. Fascinado por uma biografia que começa em 1500 e acaba em 1928, de um personagem que no início é um homem e no final se tornou uma mulher, Preciado não tardou a reconhecer que ali estava uma biografia de si mesmo escrita um século antes da sua existência, e que talvez por isso pudesse apontar caminhos para o futuro. Viver mais na ficção do que na realidade é condição comum a todos os que pertencem às minorias, acredita Preciado, já que elas não têm uma existência política completa dentro da realidade, e por isso a imaginação política, ou seja, a ficção, se torna ferramenta essencial para a sobrevivência e a libertação.

No filme, a conversa com o Orlando de Woolf permite falar de transição de gênero sem recorrer à linguagem normativa, medicalizada e limitada da realidade, inserindo no discurso a poesia e a intertextualidade. Em oposição dialética, a escolha do filme de ensaio como formato viabiliza que, sem deixar o plano do real, possa entrar a ficção. Preciado constrói uma sinfonia polifônica de protesto, humor e ironia sobre as vicissitudes de se questionar o binarismo num mundo despreparado para isso. Burocracia, medicalização, controle, ignorância, despreparo: tudo incide sobre os corpos. A crítica à maneira como a psicanálise falhou na compreensão do que está além dos conceitos de homem e mulher já havia sido o eixo da palestra que o filósofo deu a 3.500 psicanalistas em Paris, em 2019. Na ocasião, só conseguiu ler um quarto do discurso. O texto completo foi transformado no livro Eu sou o monstro que vos fala.

No discurso aos psicanalistas, em que afirmou ter “a honra de comparecer perante a Academia para lhes dar um relatório sobre a minha vida como homem transexual”, Preciado lança mão de “Um relatório para uma academia”, de Kafka. O uso provocador das instituições basilares da condição humana, que definiram e limitaram as possibilidades existenciais, é uma constante articulação intelectual na obra do filósofo. Numa das sequências do documentário há a performance de uma operação médica. Sobre ela, Preciado afirmou: “Embora a representação seja uma cirurgia, quem está sendo operada ali é a História”.

Orlando, a minha biografia política não é um marco só por tratar de um tema contemporâneo de forma inédita. Retrato bem-humorado de uma luta que não se rende a qualquer autoelogio, responde, com inteligência e coragem, a todas perguntas que possam desafiá-lo, inclusive as que ainda nem nos ocorreram formular.

Esse texto faz parte do especial “Livros e Livres”, sobre literatura LGBTQIA+, realizado com o apoio do Fundo de Direitos Humanos do Reino dos Países Baixos e publicado na edição #77 da Quatro Cinco Um

Quem escreveu esse texto

Maria Sampaio Mendes

Curadora de documentários, escreve sobre cinema. 

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.