Literatura japonesa,

Ondas do além

Em ‘Rádio Imaginação’, romancista japonês aborda como podemos ouvir e lidar com as vozes dos mortos. Leia trecho inédito

01jan2022 | Edição #53

“DJ Ark: 
É meio esquisito te chamar assim, então vou falar Fuyusuke, mesmo. Eu estava ouvindo o programa e comecei a desconfiar que era você, quando você falou o nome completo, pensei sabia!.

Será que você se lembra de mim? Meu nome é Yoko Maeda, a gente estudou junto na escola, na turma do professor Matsumoto. Meu pai é dono da loja de armários Maeda, nossos pais conviviam muito no Lions Club. Lembro que uma época os dois encasquetaram que deviam construir uma estátua de um figurão do período Edo perto do porto. Queriam fazer uma estátua de bronze de corpo inteiro, não consigo me lembrar de quem. Mas no fim acho que deram com os burros n’água porque não conseguiram convencer o pessoal da associação de pescadores.

Enfim, o que eu queria dizer é que hoje de tarde vi alguém que acho que era você. Depois que meu quarto tremeu e tremeu, tanto que não dava para ficar em pé sem me segurar, e esse tremor durou tanto tempo que deu vontade de chorar, eu liguei correndo o rádio. O boletim de emergência disse que haveria um tsunâmi de seis metros. Sendo só seis metros, pensei que bastaria carregar minha mãe, que tem as pernas ruins, até um pouco acima na montanha, e ficaria tudo bem, então fui para o andar de baixo e chamei meu pai. Pegamos minha mãe, que estava paralisada de susto do lado da mesinha kotatsu na sala dos fundos, vestimos nela todas as roupas possíveis e saímos de casa. 

No começo, enquanto levava minha mãe pela mão, eu ia virando toda hora pra ver o lado do mar. Depois comecei a pensar nas pessoas da vizinhança — será que elas estavam bem? Tinha gente correndo, gente gritando o nome dos parentes dentro de casa. Nessa hora em que estava olhando ao redor, vi um homem de blusão vermelho na varanda do quinto andar de um prédio à direita da rua. Ele estava olhando em direção ao mar. Acho que pensei que era você, Fuyusuke, porque no dia anterior um colega de escola tinha comentado que você ia mudar de volta para cá, eu não sabia onde vocês iam morar, mas numa cidade pequena assim a gente já supõe em que região vai ser, sem nem se dar conta.

Não entendi por que você não estava fugindo. Será que era por causa do primeiro boletim que disse seis metros? Ou você tinha vivido tempo demais em Tóquio, sem fazer treinamento para emergências? Também pareceu que talvez você estivesse falando com alguém do lado de fora. Mas não consegui pensar muito nisso, segui encorajando meu pai até a viela ao lado dos Laticínios Tokita, onde pegamos meu carro no estacionamento e subimos a ladeira.

Não tenho forças para escrever em detalhes tudo o que aconteceu depois, mas uma conhecida bateu na janela do nosso carro e disse que era pra gente tomar todo o cuidado possível, então resolvemos ir até um lugar mais alto ainda. Deixei meus pais naquele planalto onde fica a serralheria e tentei correr de volta até em casa para pegar uns documentos do banco sobre os quais minha mãe falava sem parar, como uma louca. As ruas estavam surpreendentemente vazias, achei que ia dar certo.

Depois de dirigir bem pouco sozinha, vi que uma coisa inacreditável começava a acontecer ao longe. Toda a metade de baixo do céu foi ficando preta. Entendi que aquela história de seis metros era mentira. Casas começaram a balançar ao mesmo tempo, depois prédios e carros se juntaram a elas. Todo tipo de construção se agitava e se movia, para cima e para baixo, de um lado para o outro. Manobrei de qualquer jeito e acelerei de volta para os meus pais. Dessa vez, todas as ruas por onde tentei passar estavam bloqueadas por outros carros. Larguei o meu e corri, me voltando para olhar para trás de novo, e de novo.

Passou bastante tempo depois disso, Fuyusuke. Quando dei por mim, todo o meu corpo estava encharcado. Tenho a impressão de ter visto de relance, uma hora em que olhei para trás, alguém de blusão vermelho sendo erguido bem alto e girando. E, um instante depois, desaparecendo para dentro da água. Talvez eu também tenha sido engolida pela água. O desespero deixou minhas memórias todas entrecortadas. Mas em certo momento o blusão vermelho apareceu de novo, à minha direita, acima de onde costumava ser o rio, passando numa velocidade impressionante.

E então acho que vi o blusão ser carregado em direção à montanha coberta de cedros-japoneses, enganchar em uma árvore e ficar sendo sacudido para lá e para cá. Mesmo depois que a água baixou, olhei mais algumas vezes para esse homem de casaco vermelho. Ele nunca se moveu. Eu também não conseguia me mexer, meu corpo parecia ter se chocado contra alguma coisa e ficado dormente. E assim a noite caiu. Passaram-se horas e você continuou exatamente igual.

Fuyusuke, por isso fiquei um pouco aliviada ao te ouvir falando assim com tanto entusiasmo! Desça logo daí.”

Memória

Nossa, fui lendo tudo de uma vez e agora não sei por onde começar. Bom, antes de mais nada, eu lembro perfeitamente de você, Yoko. Há quanto tempo! E eu estou mesmo usando um blusão vermelho agora, como você escreveu. Só que não tenho nenhuma memória dessas coisas terem acontecido comigo. Realmente não entendo… Será que isso significa que a única memória que eu tenho, a sensação do meu corpo sendo erguido no ar, é de ter sido engolido por uma onda? Pra começar, essa árvore aqui tem muito mais de seis metros. Deve ter mais do que o dobro disso. Será possível uma onda chegar até aqui?
Mas é, você comentou que eu estava sem me mover havia várias horas, pensando bem, já faz um bom tempo que eu não me mexo, por um lado estou estranhando como é que consigo ficar assim imóvel, vestindo só um blusão impermeável, nessa neve, no meio da madrugada. Então quase chego a pensar se será que eu, será que eu não… Mas não pode ser.
Seja como for, tem alguma coisa muito fora do normal aqui.

Hã, vamos para um intervalinho rápido. 

Ouvir uma música.

Vejamos. “Águas de março”, com Tom Jobim, o gigante da bossa nova. 

Para quem não sabe do que se trata: imagine que está ouvindo.

Só que vou deixar tocando no repeat até voltar, então podem aproveitar para ir tomar alguma providência, abraçar a felicidade em sonhos, fiquem à vontade.

Aqui vai. 

(Tradução de Rita Kohl)

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.
Nota do editor
Rádio Imaginação vai ser publicado no Brasil em 2022, pela Companhia das Letras.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.