Rubem Fonseca nos anos 70 (Acervo pessoal)

Literatura brasileira,

Tudo o que tenho a dizer sobre Rubem Fonseca

No centenário de nascimento do escritor avesso aos holofotes, outro escritor, formado por ele, relembra histórias do ‘grande mestre’

01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93

No final de 2003, fui ao México para atender a um convite para lá de honroso: dar um depoimento sobre a obra de Rubem Fonseca, que, durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara daquele ano, receberia o Prêmio Juan Rulfo, a mais alta distinção do mundo literário latino-americano. Uma espécie de Nobel das Américas. Antes dele, o prêmio fora concedido a escritores como o hondurenho Augusto Monterroso, o chileno Nicanor Parra, o mexicano Juan José Arreola, o argentino Juan Gelman e a brasileira Nelida Piñon, entre outros. 

Entrei no pavilhão da feira acompanhando Zé Rubem, como ele gostava de ser tratado na intimidade, e avançamos pelos corredores enfeitados por banners enormes com uma foto do homenageado e a citação: Soy un hombre consumido por el presente. Ele me puxou de lado e comentou:

“Muito bonito, só que eu nunca escrevi essa frase”.

“Escreveu, sim”, rebati, na hora. 

“Onde?”

“Está no conto ‘O inimigo’.”

Ele me olhou com uma incredulidade que, aos poucos, deu lugar àquela ironia com que costumava matizar a expressão de muitos de seus personagens. 

“Você não pode saber mais do que eu, que escrevi o conto.”

O Brasil encontrou um intérprete que sintetizava as contradições de um país à beira da explosão urbana

A solução foi recorrer ao estande da Alfaguara, que publicou no México um volume com Los mejores relatos de Rubem Fonseca, magistralmente traduzidos por Romeo Tello Garrido. E lá estava, no conto “El enemigo”, um dos meus favoritos, a frase renegada. Zé Rubem me deu a mão e, a partir daquele dia, me converteu numa espécie de consultor da própria obra. De vez em quando, me escrevia perguntando em que livro estava determinada cena que havia criado. 

Como eu sabia? É que, em geral, tenho excelente memória para textos que me encantam. Li (e reli várias vezes), sempre de maneira apaixonada e atenta, todos os livros desse grande mestre, cujo centenário de nascimento é celebrado neste mês de maio. Rubem Fonseca é um autor fundamental na minha formação como leitor e escritor. Não consigo pensar em nenhum colega brasileiro, que se dedique ao gênero policial, em cuja escrita não ecoe sua voz. 

Obviamente, Rubem Fonseca não foi apenas um escritor policial. 

Estreante tardio

Nascido em Juiz de Fora (MG), ele se mudou muito cedo para o Rio de Janeiro, onde cresceu e exerceu diversas profissões, entre as quais a de comissário de polícia. E pode-se dizer que estreou até meio tardiamente na literatura: estava já com 38 anos quando lançou seu primeiro livro. A verdade é que poderia ter debutado alguns anos antes, não fosse a inépcia do dono de uma gráfica na rua das Marrecas, no centro da cidade. 

Zé Rubem se divertia sempre que relembrava o episódio: ele vinha escrevendo suas primeiras narrativas desde o final da década de 50 e, como não fazia a menor ideia de como se publicava um livro, um dia procurou essa gráfica. O dono pediu que ele deixasse os originais para avaliação e retornasse depois. Seis meses mais tarde, o futuro escritor descobriu, horrorizado, que o homem tinha perdido seu livro. O pior de tudo: não existiam cópias daqueles contos, dos quais o relapso dono da gráfica foi o único leitor. Ele ainda se lembrava dos textos extraviados — por conta dos palavrões que continham. E aconselhou o autor a “tentar escrever como Machado ou Eça”. 

Capa das primeiras edições de Os prisioneiros (Edições g. r. d., 1963), Lúcia McCartney (Olive Editor, 1969) e Feliz ano novo (Artenova, 1975) e da quarta edição de O cobrador (Nova Fronteira, 1979) (Reprodução)

De volta à estaca zero, Rubem Fonseca tratou de criar novas narrativas, parte das quais iria compor Os prisioneiros, sua obra de estreia, lançada em 1963. Um magnífico conjunto de contos, com os quais o autor começa a fincar os marcos de sua grande arte: a escrita concisa, a precisão do detalhe, o flerte sutil com o grotesco, os toques de refinada erudição, o humor nem sempre politicamente correto e, acima de tudo, a capacidade de observar e traduzir a realidade em ebulição ao seu redor. O Brasil e, em particular, o Rio tinham encontrado um intérprete original, que sintetizava em sua prosa contundente as contradições de um país à beira de uma grande explosão urbana. 

O segundo livro, A coleira do cão, saiu dois anos depois e serviu para consolidar a posição do escritor como um renovador da linguagem, na medida em que suas criações estabeleceram as feições do moderno conto urbano brasileiro. Um dos destaques dessa extraordinária coleção de narrativas é “A força humana”, um pungente mergulho no universo dos perdedores. Um texto com a potência de um soco, que não demorou a ser reverenciado como um clássico contemporâneo. Para o crítico Wilson Martins (1921-2010), “‘A força humana’ não é apenas um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos; é, também, um dos melhores da literatura universal”. A narrativa que dá título ao livro também merece menção: foi a primeira incursão do escritor pelo território da ficção policial, que viria a ser uma importante linha de força de sua obra.

Óculos escuros

Anônimo convicto, avesso aos holofotes e ainda mais às entrevistas, Zé Rubem achava engraçadas as histórias que circulavam a seu respeito. Como a de que em certa ocasião se disfarçou de mendigo e subiu à favela numa noite de Ano-Novo, em busca de material e personagens para um relato. Lendas. É certo apenas que, naqueles tempos de circulação restrita de imagens, seu rosto era desconhecido para a grande maioria. 

Uma vez, no centro do Rio, ele entrou em um sebo em companhia da jornalista e chef mexicana Lourdes Hernández Fuentes. Vestia seu figurino preferido: casaco, óculos escuros e boné. Um disfarce. Lourdes abordou o proprietário e perguntou por livros de Rubem Fonseca. A resposta do homem desconcertou os dois: “Já tive. Mas, agora que ele morreu, estão em falta”. 

Deixaram para rir na rua. 

Em 1969 surgiu sua terceira coletânea de contos, Lúcia McCartney. Vale a pena se deter um pouco sobre esse livro, um dos melhores do autor, em primeiro lugar pela qualidade dos textos. Chama a atenção o investimento formal que transparece em boa parte do volume — o conto-título, por exemplo, tem momentos de puro experimentalismo à la pós-moderno norte-americano. Há espaço para narrativas curtíssimas, enunciadas feito poemas, como “Os inocentes”, com seu plot twist cínico, e “Corrente”, que é, como o título indica, uma daquelas correntes que, se quebradas, traziam infortúnios. O conto “O caso de F. A.” marca a primeira aparição do doutor Paulo Mendes, um advogado mulherengo que se envolve pessoalmente na resolução prática dos casos. Uma espécie de precursor do personagem Mandrake, que vai protagonizar diversas narrativas posteriores. Também estão nessa coletânea relatos que têm por cenário ruas e personagens de Nova York, e que evocam a temporada que o autor viveu nos Estados Unidos.

A partir de 1971 teve início seu envolvimento com uma de suas maiores paixões, o cinema, tanto na condição de roteirista quanto na de autor de livros que serviram de matriz para longas, curtas e seriados. Nesse ano, o cineasta carioca David Neves (1938-1994) dirigiu Lúcia McCartney, uma garota de programa, escalando para o papel da prostituta existencialista a brasileira nascida argentina Adriana Prieto (1950-1974), musa vigente na ocasião. Em 1974, o diretor Flávio Tambellini (1925-1976) transformou o conto “Relatório de Carlos” no longa Relatório de um homem casado e, no ano seguinte, filmou o primeiro roteiro original de Rubem Fonseca, A extorsão. A lastimar apenas que bem pouca gente tenha assistido a esse thriller tenso e amoral, interditado pela censura do regime militar, que não aprovou a trama em que os bandidos triunfam no final. Para os censores, o mal não podia nunca vencer o bem — ao menos nas telas dos cinemas. 

Foi a primeira vez que a censura implicou com a obra de Rubem Fonseca. A primeira de várias.

Na mira

A década de 70, que foi uma época de ouro para o conto no Brasil, com o surgimento de novas vozes e grandes livros, foi também um tempo de exceção e sombras. E talvez nenhum outro escritor tenha representado um papel tão emblemático para o período quanto Rubem Fonseca. 

Na contramão dos autores que recorriam à alegoria para falar de um país sitiado pelo obscurantismo, ele publicou Feliz ano novo, em 1975, e lancetou, sem anestesia, o nervo exposto do real. Nos contos desse livro, que acabou se tornando um símbolo do embate do artista contra o autoritarismo, desfila um Brasil pobre, feio, vulgar e violento. São verdadeiros boletins de ocorrência da realidade, que flagram o exato instante em que a brutalidade se converteu em moeda de troca. Restam poucos dentes na boca do homem cordial e em seu peito pulsa um desejo ainda vago e impreciso de promover um ajuste de contas. 

‘Feliz ano novo’ foi proibido em 1976 e um político chegou a recomendar a prisão do escritor

No conto que dá nome à coletânea, um trio armado invade uma festa de réveillon numa mansão de luxo e barbariza os convidados. Um dos invasores chega ao requinte de testar se um corpo adere mesmo por um instante à parede, antes de deslizar para o chão, ao ser atingido à queima-roupa por um tiro de grosso calibre, como acontece nos filmes de Hollywood. Em “Passeio noturno – parte I” e “Passeio Noturno – parte II”, o protagonista é o mesmo: um alto executivo que, à noite, entediado, sai de casa com seu carrão envenenado para atropelar pessoas. “O campeonato” fala de um torneio de conjunções carnais num futuro distópico do Brasil. “Abril, no Rio, em 1970” é um respiro quase lírico nesse universo turbulento ao falar de futebol, e de perdedores, na única vez que Rubem Fonseca se ocupou do tema — ele gostava de futebol; era vascaíno. Há dois relatos no livro que têm escritores como personagens: um em tom farsesco, “Agruras de um jovem escritor”; o outro, “Intestino grosso”, é uma longa e reveladora entrevista em que um autor cobra por palavra e tem como divisa a frase “Adote uma árvore e mate uma criança”. Convém não se enganar com o título “Dia dos namorados”, que registra a primeira aparição do personagem Mandrake, um advogado cínico, amante de vinhos e charutos e de outros prazeres da boa vida: trata-se de uma história de chantagem de cunho sexual. “Nau Catrineta” fala de um rito secular de iniciação envolvendo canibalismo. Etc.

Convenhamos: não era um cardápio dos mais palatáveis para os zelosos censores a serviço da ditadura. Feliz ano novo foi proibido em 15 de dezembro de 1976, por ordem do ministro Armando Falcão, da Justiça, sob a acusação de “exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes”. Todos os exemplares em circulação foram apreendidos. Um político de Brasília, cujo nome caiu em compreensível esquecimento, chegou a recomendar a prisão do escritor. Como se fosse possível culpar o inventor da escala Richter pelos terremotos. 

Rubem Fonseca ficou muito irritado com a arbitrariedade. Lançado um ano antes, Feliz ano novo já tinha ultrapassado a marca das 30 mil cópias comercializadas e ocupava, no momento de sua interdição, o segundo lugar na lista dos livros mais vendidos, convertendo-se no primeiro best-seller da carreira do escritor. 

Então ele decidiu reagir. 

No âmbito legal, acionou a União por perdas materiais e danos morais, num processo que se arrastou ao longo da década seguinte, terminando com a vitória do autor e a condenação da União. O livro só voltaria a circular em 1989.

No campo literário, dedicou-se com afinco às histórias que integrariam o livro-libelo O cobrador, publicado em 1979, um verdadeiro revide do escritor perseguido pela intolerância. A começar pelo conto-título, um ruidoso pé-na-porta para sobressaltar o sono da burguesia. Conto-manifesto, a trama vive de elencar o que o protagonista julga que lhe devem. Cabe muita coisa no rol entre o básico e o luxo. “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”, recita o narrador enquanto promove um alucinado ajuste de contas ao seu redor. Nas horas vagas, o justiceiro se dedica à poesia. E ao amor da palindrômica Ana, que se une a ele para, juntos, ampliarem o alcance da cruzada que passam a pôr em prática. Poucas vezes a literatura brasileira foi tão crua e cruel — e contundente. 

Poucas vezes a literatura brasileira foi tão crua e cruel — e contundente — quanto em ‘O cobrador’

Mas o escritor continuava na mira da censura. 

Um ano antes de ser publicado em livro, o conto “O cobrador” foi o grande vencedor do concurso literário promovido pela extinta revista Status, uma publicação masculina que misturava artigos sofisticados, reportagens de fôlego e beldades desnudas ao melhor da ficção produzida no país.
O concurso era aberto a autores consagrados e iniciantes, sob pseudônimo, e pagava o maior prêmio financeiro da América Latina. Para chegar ao veredito, o júri, formado pelo poeta Ferreira Gullar (1930-2016), pelo filólogo e dicionarista Antônio Houaiss (1915-1999) e pelo jornalista Gilberto Mansur (1954-2025), teve de examinar mais de 3 mil originais. 

Ao premiar “O cobrador”, consagrou um escritor que alcançava naquele momento a plenitude de sua literatura e um texto que não fazia concessão alguma ao retratar um Brasil à beira da convulsão social. E também assanhou mais uma vez a fúria predatória da censura, que proibiu a revista de veicular o conto. Para não frustrar os leitores, a revista publicou outra narrativa do autor, “Mandrake”, ainda assim com o corte de palavras que qualquer cidadão está cansado de escutar no dia a dia, mas que aos ouvidos autoritários da turma que oprimia o país soavam “obscenas”. 

Hoje considerado um clássico contemporâneo, “O cobrador” foi adaptado para o teatro em 1990, por Beth Lopes e Luís Cabral, numa peça em que as soluções cênicas inventivas contribuíam para manter presente toda a virulência do conto. Não obteve o mesmo resultado quando levou o relato às telas o diretor mexicano Paul Leduc (1942-2020). Talvez a ideia de incorporar outro conto do autor (“Passeio noturno”) ao roteiro não tenha sido tão boa, já que desvia o foco narrativo com uma trama claramente menos potente. Resta o prazer de ver em cena Lázaro Ramos, um dos maiores atores brasileiros em atividade, no papel principal. 

De certa maneira, o livro O cobrador assinala o fim de um ciclo na carreira de Rubem Fonseca, que volta seu interesse na década seguinte para o romance, publicando quatro títulos em sequência: A grande arte (1983), Bufo & Spallanzani (1986), Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988) e Agosto (1990) — o autor só voltaria à ficção curta em 1992, com o volume Romance negro e outras histórias. Nos 63 contos que compõem essa primeira parte da obra, de “Os prisioneiros” a “O cobrador”, está contida, na minha opinião, a suma da prosa fonsequiana, as bases estilísticas sobre as quais ele vai assentar toda sua literatura posterior. Um universo original, urgente e necessário. 

Lavínia

Um P. S. pessoal e sentimental: em 2005, eu trabalhava na revisão final do meu romance Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Companhia das Letras), às vésperas de sua publicação, quando recebi um telefonema de Zé Rubem. Me contou que tinha lido os originais e gostado. Com uma única e importante ressalva: o título. Apesar de ser também adepto de títulos caudalosos — E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto é um bom exemplo —, ele implicava com o meu, achava que era “longo demais”. E propunha que só existia um nome possível para o livro. O nome da heroína. “Lavínia.” 

Ousei discordar, em homenagem à verdadeira epopeia que cercava aquele título. Eu já havia superado a resistência que sempre provocava sua menção. De nada adiantou, Zé Rubem não deu o braço a torcer. E acho que foi a única ocasião em que estivemos em desacordo em relação a algum assunto literário. 

No ano seguinte, ele lançou sua décima-quarta coletânea de contos, Ela e outras mulheres, na qual todas as narrativas são batizadas com nomes femininos. Uma delas se chama Lavínia. 

Rubem Fonseca morreu no dia 15 de abril de 2020, de infarto, em seu apartamento no bairro carioca do Leblon, onde morava, a pouco menos de um mês de completar 95 anos. Deixou–nos um legado e tanto. E um outro tanto de saudade.

Nota do editor

Atualmente, as obras de Rubem Fonseca são editadas pela Nova Fronteira.

Quem escreveu esse texto

Marçal Aquino

jornalista, escritor e roteirista, é autor de Baixo esplendor (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “Tudo o que tenho a dizer sobre Rubem Fonseca”

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