Literatura brasileira,

O ritmo da língua

Para falar com idioma próprio, Aline Bei busca inspiração nas artes do corpo

25abr2023 | Edição #69

Aline Bei escreve acompanhada do silêncio. Recuos, espaços e fragmentos compõem a malha que sustenta seus dois livros publicados, desenvolvidos como parte do que talvez seja sua maior obsessão: encontrar uma língua dentro da língua. Que se pareça com português, mas seja um idioma próprio. Para isso, a escritora, que foi atriz durante toda a adolescência, recorre a um elemento comum ao teatro e à literatura: o ritmo.

A sonoridade de Aline é a de quem aprendeu que não existe ritmo sem pausa. Nem na cena, nem no texto. Quase uma epopeia de fatos cotidianos, seus versos não fazem poema. “Eu não sou poeta”, afirma. Mas a palpitação no corpo de quem lê teima o contrário. Foi com o teatro que a escritora aprendeu a construir imagens tão fortes e a encadear palavras de forma tão ritmada, o que dá ao texto um movimento próprio.

“No teatro, a gente sempre ouvia isso: a cena tá sem ritmo, a peça tá sem ritmo. Eu acho que isso ficou pra mim quando eu escrevo. Talvez a minha busca pela perfeição seja musical, sonora”, diz a escritora.

Essa maneira de unir e quebrar frases, que lhe rendeu o prêmio São Paulo de Literatura em 2018, por O peso do pássaro morto (Nós), e uma posição como finalista do Jabuti em 2022, com Pequena coreografia do adeus (Companhia das Letras), também dificulta a classificação das suas obras em um único gênero.


Pequena coreografia do adeus, de Aline Bei

“Eu acho que a gente não pode acreditar muito em gênero”, opina ela, que disse ter chamado seus livros de romance apenas pelo tempo — mais longo — que se demorou nas páginas. É assim que ela sabe que a palavra escrita não se bastará em um conto: porque a inquietação se faz mais densa, pede mais.

Curso livre de teatro

Aline Bei começou a atuar aos quatorze anos, quando, influenciada por exercícios lúdicos na sala de aula, pediu aos pais que a colocassem em um curso livre de teatro. Toda semana, saía de Barueri, cidade a cerca de trinta quilômetros de São Paulo, para frequentar aulas no Museu de Arte Moderna da capital. Dessa época, o cheiro de tinta e o chão de ardósia do museu despontam como memórias de nascimento. “É até difícil dizer, mas realmente foi onde eu nasci.”

Determinada a dar continuidade aos estudos cênicos, aos quinze ingressou no Célia Helena Centro de Artes e Educação, que oferecia um curso profissionalizante de três anos. Terminou a formação em teatro junto com o Ensino Médio, mas a pressão por ter uma segunda profissão levou a jovem atriz a prestar vestibular para letras na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Só quando já era estudante de graduação é que começou a escrever. “E então a literatura não deixou lugar para mais nada”, conta. Ocorre que nossas obsessões sempre dão um jeito de voltar.

Durante a escrita de seu segundo romance, Pequena coreografia do adeus, o teatro se manifestou, para além do ritmo, na forma de uma pesquisa interminável sobre o espetáculo Café Müller, da coreógrafa alemã Pina Bausch. Apresentada pela primeira vez em 1978, a obra se tornou um emblema do que se convencionou chamar de dança-teatro. Na obra de Bausch, mulheres em camisolas brancas esbarram contra as paredes de um café fechado. Tropeçam nas cadeiras. Se acomodam em braços masculinos e caem, para então esbarrar contra as paredes. Tropeçar nas cadeiras. Se acomodar em braços masculinos e cair. Numa dança que é novidade e repetição, novidade e repetição (como são todas).

Sua gramática feita de intuição se aproxima da dança, da performance e do teatro

Foram movimentos parecidos que Aline decifrou no corpo da protagonista Julia Terra, uma jovem funcionária de um café solitário que tenta, de todos os modos, encontrar uma saída para as prisões mentais nas quais se encontra. “Eu acho que foi o que deu o motor debaixo do livro. Esse é o movimento do enredo, não é nem só da Julia. Fiquei assistindo Café Müller incansavelmente, até que assentou”, diz a autora.

O primeiro contato com a peça foi por meio das cenas retratadas no filme Fale com ela (2002), de Pedro Almodóvar. Depois, viu o documentário Pina (2011), do diretor Wim Wenders, e começou a comprar livros e mais livros sobre a coreógrafa, ir atrás de vídeos, assistir entrevistas.

Em processo de escrita desde o ano passado, o terceiro romance de Bei, ainda sem previsão de lançamento, também tem como narrador alguém que pegou emprestada sua voz do teatro. É seu primeiro livro em terceira pessoa, o que, segundo ela, significa ter muito mais gente de quem cuidar. Para ter certeza de que percorrerá o interior de cada personagem com afinco, se inspira na Voz da peça Vaga carne, da mineira Grace Passô.

Todo mundo que já assistiu, escutou ou foi possuído pela Voz que vaga da peça de Passô relata ter sido arrebatado por uma presença que roça as superfícies por dentro, seja de uma mulher negra ou de um frasco de hidratante. Esse estado de habitar o aqui e o agora, que torna as coisas críveis, é o mesmo que produz o acontecimento em cima do palco.

Músculo literário

E é o que Aline tenta capturar em seus livros, buscando subverter a distância que, frequentemente, coloca o escritor um passo atrás — ou à frente — dos seus escritos. “Cada vez mais, não encontro a borda entre o texto e a inscrição no espaço”, reflete ela. Teatro, poesia ou romance, o fato é que Aline Bei escreve. Ponto. [Este recurso gramatical raramente usado por ela, exceto quando deseja costurar algo com força.]

Suas maiúsculas, nada comprometidas com os começos de frase, surgem quando ela julga que o texto pede uma atenção que sobe, aguda. E as letrinhas miúdas no segundo livro, quase subterrâneas, representam os momentos em que a protagonista Julia Terra se sente minguar, como se gestada pela terra.

É assim, nessa gramática feita de intuição, que Aline Bei encontra sua língua dentro da língua. Uma língua que é literatura, mas também o músculo que a diz. E que talvez por isso se aproxime da dança, da performance e do teatro — onde obra e artista são, frequentemente, um só corpo.

Quem escreveu esse texto

Carolina Maingué Pires

É jornalista e especialista em jornalismo econômico pela Fundação Getúlio Vargas/Estadão.

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.