
Literatura brasileira,
O poeta que fez um país
‘Fullgás’ e outros poemas musicados de Antonio Cicero, morto aos 79 anos, são símbolos afetivos de sucessivas gerações que pedem por mudanças
24out2024Na célebre introdução que fez para a sua tradução dos poemas de Safo, Anne Carson listou as inúmeras dúvidas que cercam a poeta grega. É que mitos são edificações erguidas com a argamassa das incertezas e, nesse caso, elas são inúmeras. Nasceu por volta do ano 630 antes de Cristo, na ilha de Lesbos, mas a data da morte é imprecisa. A imagem que a representa, exposta no Museu Nacional de Atenas, é apenas uma imagem ideal, a conjectura material da pessoa para nos alentar.
Safo teria se exilado por questões políticas. Teria amado outras mulheres. Teria pedido ainda que uma certa noite se transformasse em duas, mas jamais saberemos o porquê do seu desejo. Apenas um dos seus poemas teria sobrevivido na íntegra. De resto, apenas pedaços de poemas — cujos espaços vazios são marcados por colchetes de silêncio — chegaram até nós.
Se há uma certeza sobre Safo, aponta Carson, é que ela era musicista e que toda sua música se perdeu. Quando lemos o que sobrou da produção de Safo, no fundo, cantamos junto sua música desaparecida.
Safo era uma das paixões do poeta, filósofo e imortal da Academia Brasileira de Letras Antonio Cicero, morto nesta quarta (23), aos 79 anos.
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Ao contrário da poeta grega, a música que acompanhou seus poemas ecoa num volume estrondoso num Brasil que, nas últimas quatro décadas, tem vivido outro capítulo da sua relação conflituosa com a palavra “democracia”.
Se começamos falando em pedaços de poemas, um trecho do seu “Fullgás”, musicado por sua irmã Marina Lima, e lançado naquele 1984 da campanha Diretas Já, ganhou uma simbologia afetiva de pleito por mudanças, nos últimos anos. O pedaço em questão está lá no finalzinho: “Você me abre seus braços e a gente faz um país”.
É a frase (ou a oração ou o patuá) que nos acompanha por passeatas, algumas delas inférteis, em abraços calorosos por festas cheias de esperança, em posts nas redes sociais contra o fascismo. Por razões diversas, durante os momentos finais do governo Dilma, durante Bolsonaro e outra vez por Lula, esse verso nos embalou. E nos embala.
Fullgás
Mês passado uma mostra sobre a arte brasileira dos anos 80, no CCBB carioca, recebeu o nome de Fullgás. Apesar de ter publicado vários livros de poemas, ensaios e filosofia, como A cidade e os livros (Record, 2002) e finalidades sem fim (Companhia das Letras, 2005), talvez nenhuma obra sua seja mais conhecida que essa. E nenhuma outra música do chamado Rock Brasil daquela década parece ainda nos dizer tanto.
Mas diante do tempo que nos cerca, prefiro outro trecho desse mesmo poema, por sua crença radical no presente: “Só vou te contar um segredo/ Não nada/ Nada de mal nos alcança”.
Penso que outro poema de Cicero, “À francesa”, também musicado por sua irmã com enorme sucesso popular, seja uma espécie de continuação da história contada em “Fullgás”. “À francesa” foi lançada por Marina Lima no álbum Próxima parada, naquele Brasil turbulento de 1989, marcado pela inflação galopante do governo Sarney e pela primeira eleição direta para presidente desde a redemocratização. Um país do mal-estar, dos tais marajás (funcionários públicos que, por meio de processos fraudulentos, acumulavam salários desproporcionais) — e de onde o melhor era encontrar uma rota de saída.
“À francesa” descreve uma relação em que os braços já não são mais abertos. Alguém parece querer ir embora. Alguém parece precisar ficar. O impasse está impresso logo nos versos iniciais: “Meu amor, se você for embora/ Sabe lá o que será de mim”. No clipe da canção, Marina Lima passeia de casaco de couro e de óculos escuros por uma cidade tropical. É como se não estivesse mais lá e fosse uma assombração na paisagem. É a nova estrangeira, num território de esperanças envenenadas.
À certa altura, o poema soa como se o Brasil tentasse discutir a sua relação com os brasileiros, em plena terapia de casal: “Se eu te peço pra ficar ou não/ Meu amor, eu lhe juro/ Que não quero deixá-lo na mão/ E nem sozinho no escuro”. Seja sobre a crise com a pátria amada, seja sobre dois amantes, “À francesa” é um palimpsesto de histórias de amor.
Guardar
Reencontramos “À francesa” na primeira reunião de poemas de Antonio Cicero, Guardar, publicada em 1996, e um dos grandes títulos da poesia brasileira contemporânea, que, no entanto, está há anos sem nova edição. Guardar reencena a obsessão do autor pela poesia clássica, lançando sobre nossas cabeças o tabuleiro de intrigas daqueles deuses que tanto nos fascinam justamente porque são divinos e perfeitos apenas pela metade.
São deuses em tempos de guerra — “É propício que Afrodite vença as primeiras batalhas/ e Atena sempre as últimas/ Hera deve perder”, num território onde o amor só é amor por ser narcísico, onde se é o amante sem ser o amado, onde a Criação duvida da própria arte final — “Hesitante entre o mar ou a mulher/ a natureza o fez rapaz bonito”.
Na orelha de Guardar, o crítico e escritor Silviano Santiago escreve que “Antonio Cicero é, ao mesmo tempo, herdeiro das superfícies e das profundezas”, por isso o fascínio pelas divindades fraturadas que descreve em seus versos. Santiago aponta ainda que, em Guardar, guardam-se coisas não para escondê-las, mas para que melhor sejam vistas, como narra o poema que dá título ao livro.
“A palavra poética é fratura exposta; está exposta à visitação dos olhos de Narciso, como uma radiografia do (próprio) coração”, escreve Santiago. E tomo a liberdade para suplementar a observação do crítico: a palavra poética está exposta também para ser guardada, melhor guardada, dentro de uma canção popular.
Escrevo essas palavras e volto a Safo e a um dos seus fragmentos, na tradução de Guilherme Gontijo Flores: “sei que alguém no futuro também lembrará de nós”. E, no caso de Cicero: lembrará cantando, como desde o início pediam os poemas.
Nota do editor: Antonio Cicero tinha sido diagnosticado com Alzheimer e fez um procedimento de suicídio assistido na Suíça. Deixou uma carta de despedida, compartilhada por seu marido, o figurinista Marcelo Pies.
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