Identidades, Literatura infantojuvenil,

Jovens queer precisam de histórias queer

Em efeito dominó, bibliotecas escolares baniram o meu livro só porque escrevi que pessoas trans não binárias existem

01out2022

Na noite de 23 de setembro de 2021, fui marcada em um vídeo no Instagram. Parecia ser uma filmagem de uma reunião do conselho municipal, e uma mulher discursava com raiva diante de um suporte para ler livros. Não liguei o som. “Esses são os doentes que escrevem esses livros horrorosos”, alguém comentou ao marcar o meu perfil e o de outro autor, Jonathan Evison.


 

Na manhã seguinte, acordei e vi vários e-mails de jornalistas da Associated Press e de agências de notícias de Washington. Meu livro de estreia, Gender Queer: A Memoir, havia sido censurado em uma reunião do conselho escolar do condado de Fairfax, nos arredores de Washington, na Virgínia.


 

A história foi se desdobrando ao longo da semana seguinte. Fiquei sabendo que o norte da Virgínia havia se tornado o centro de um debate acalorado, com protestos contra e a favor dos direitos de estudantes transgênero, provocando gritaria, correntes de orações e até uma prisão durante reuniões de conselho. Ao ler o Washington Post descobri que uma das mães de Fairfax “escolheu como alvos Gender Queer e Lawn Boy [de Evison], livros com personagens LGBTQ, ao tomar conhecimento desses textos durante a cobertura midiática de protestos realizados por pais de alunos no Texas. Ela vasculhou a biblioteca do colégio onde seus filhos estudavam e percebeu que os livros também estavam disponíveis na rede pública de Fairfax”. Alguns alegaram que o livro incentivaria a pedofilia, baseando-se em um único quadrinho, que retrata um vaso erótico da Grécia Antiga. Outros simplesmente o tacharam de pornografia — acusação muito comum contra trabalhos que têm a sexualidade queer como temática.


 

Uma semana depois, fiquei sabendo que Gender Queer também havia sido censurado em uma escola distrital na Flórida. Um mês depois, o livro passou a ser formalmente contestado em escolas de Rhode Island, New Jersey, Ohio, Washington e, mais uma vez, Texas.

Na turnê de lançamento do livro, em 2019, me perguntaram várias vezes: “Você indica esse livro para leitores de que idade?”. Em geral a minha resposta era: “Para alunos a partir do ensino médio”, mas a verdade é que escrevi o livro tendo em mente os meus pais e parentes próximos. Quando estava me assumindo como não binárie, ouvi muitas vezes comentários do tipo: “Nós te amamos, estamos do seu lado, mas não temos a menor ideia do que você está falando”.


 

Contei para a minha mãe que era queer no último ano do ensino médio. Levei quase uma década para dizer a ela que também era não binárie, embora já questionasse a minha identidade desde o início da puberdade, aos onze anos. Um dos principais motivos para esse longo hiato entre a primeira e a segunda saída do armário foi a falta de visibilidade das identidades trans e não binárias na época da minha adolescência. No ensino médio, conheci diversos gays, lésbicas e bissexuais assumidos, mas fui ver alguém assumidamente trans ou não binárie apenas quando entrei na faculdade. Só tive acesso a informações e histórias sobre pessoas transgênero pela mídia — e principalmente por livros.


 

No início dos anos 2000, eu não tinha tv em casa e o acesso à internet era limitado, de modo que eu precisava recorrer à biblioteca local em busca de entretenimento. Toda semana eu vasculhava pilhas de mangás e romances de fantasia. Tinha particular interesse por histórias com personagens queer. Devorei Skim, de Mariko e Jillian Tamaki, e Luna e Keeping You a Secret, de Julie Anne Peters. Li a obra-prima de Howard Cruse, Stuck Rubber Baby. Também mergulhei nas páginas de Paradise Kiss, Rainbow Boys, Weetzie Bat, Annie on My Mind, Geography Club, Swordspoint, Totally Joe, Very LeFreak e de todos os livros de David Levithan que consegui encontrar. Esses livros me fizeram companhia durante os meus anos de confusão e questionamentos.


 

A American Library Association, que monitora contestações, restrições e censuras a livros em escolas e bibliotecas dos Estados Unidos, registrou que o livro mais contestado em 2020 foi Melissa (antes intitulado George), de Alex Gino, a narrativa de um aluno trans do ensino fundamental escrita por ume autore não binárie. Não raro, os jovens queer não têm opção senão procurar fora de casa e do sistema educacional as informações sobre quem eles são.

Banir ou restringir livros queer em bibliotecas e escolas é como privar os jovens queer de coletes salva-vidas, jovens que talvez ainda nem saibam quais palavras devem digitar no Google para descobrir mais sobre o seu próprio corpo, sua identidade e sua saúde.

Três semanas depois de ter ficado sabendo do banimento de Gender Queer nas escolas do condado de Fairfax, recebi a seguinte mensagem:

“É provável que você nem leia isto, mas sou ume estudante queer de escola pública em Fairfax! Minha mãe e eu lemos o seu livro. Eu amei! Me identifiquei com quase tudo o que você diz. Senti que não estava sozinhe, que alguém me compreendia. Acho que a minha mãe me entende melhor agora, e eu me sinto mais confortável para desabafar com ela depois de ela ter lido o seu livro. Muito obrigade por compartilhar suas memórias!”.

(Tradução de Bruno Mattos)

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Maia Kobabe

Escritore e ilustradore, escreveu Gender Queer: A Memoir (Oni Press)