Ficção,

A menininha do Hotel Metropol

Um capítulo inédito do livro de memórias da celebrada autora soviética, ainda sem previsão de publicação no Brasil

21nov2018 | Edição #13 jul.2018

Começo

Quando penso na espécie humana, não a imagino como uma árvore genealógica repleta de galhos.

A espécie humana parece uma floresta, estende-se ao longe — e aparece como uma corrente de pessoas-árvores de mãos dadas. Não sei por que, mas é assim. Ali, na névoa dos tempos e dos séculos, estão elas, as gerações precedentes, árvores de muitos braços, e cada antepassado está unido, pelos ramos, de um lado aos seus pais, do outro lado aos filhos. Cada homem é pai e ao mesmo tempo filho, e é, em si, único no mundo. E cada mulher é filha da sua mãe e mãe da sua filha ou filho, e ao mesmo tempo é uma criatura singular, que não se parece com nenhuma outra. Cada pessoa está só nestas três faces — filho, pai e indivíduo.

Já quem está no centro é forte, sustenta os dois lados: tanto os que estão adiante quanto os que vieram depois. E esse centro se desloca com os séculos. Uma pessoa enfraquece, a sua força passa para a próxima geração. A inteligência que possui e o conhecimento se vão junto com ela, não há como transmiti-los, mas as qualidades podem passar para os descendentes — a teimosia, até a obstinação animal, mesmo em prejuízo próprio; a força do espírito; a convicção de que a comida deve ser espartana, e a água do banho, gelada; a glutonice nas festas; a discordância das autoridades; a fidelidade às próprias posições diante do sofrimento de si e de pessoas próximas; a sentimentalidade, o amor pela música e pela poesia e a pouca paciência para bobagens; a feroz sinceridade e a absoluta incapacidade de chegar a qualquer lugar na hora certa; a pureza de intenção, a tendência a ajudar a todos e o ódio pelos vizinhos; o amor ao silêncio e ao volume do grito cotidiano; a capacidade de viver sem dinheiro e um gasto louco com presentes; a completa bagunça em casa e a exigência rigorosa de que os moradores limpem a sua sujeira — e o amor ilimitado pelas crianças pequenas, especialmente quando estão dormindo em toda a sua beleza.

A minha bisavó Ássia morreu de septicemia aos 37 anos, deixando seis filhos. O marido, o meu bisavô Iliá Serguêievitch, médico, correu até o rio. Ele se sentia culpado pela morte da mulher. Todos os cinco filhos correram atrás dele, alcançaram-no na margem e se penduraram no pai, impediram-no. A mais velha, Vera, carregava a pequena. Quando estavam enterrando a mãe, Ássia, a filha Válenka, de oito anos, ficava andando atrás do pai como uma sombra, seguindo-lhe os passos e balbuciando: “Vou te seguir pela vida inteira”. Quase todos entraram para a clandestinidade, o meu bisavô era bolchevique, lutava pelos direitos dos oprimidos. Normalmente trabalhava como médico nas fábricas; os doentes, gente pobre, vinham aos montes dos povoados e aldeias. Ele nunca aceitava dinheiro pelas consultas. Só o salário. Atendia todos os oprimidos por princípio, embora devesse cuidar apenas dos funcionários. Por isso, em geral, logo era demitido, e encontrava trabalho principalmente durante as epidemias de cólera e peste — quando aceitavam todos os médicos, até os que já haviam sido condenados.

Eu, assim que comecei a falar, o chamava de Dêdia.

Os Veguer

Nasci no Hotel Metropol, era a segunda Casa dos Sovietes; ali, os quartos estavam ocupados por velhos bolcheviques, entre eles o meu bisavô, Dêdia, Iliá Serguêievitch Veguer, membro do POSDR desde 1898. Morava ali desde que se divorciara de N. F. Iákovlev, a filha de I. S. Veguer, a minha avó, Valentina Ilínitchna Iákovlev, também do partido desde 1912, com as filhas Vera Nikoláievna e Valentina Nikoláievna, a minha futura mãe. Todos três, como convém a um conto de fadas, eram assombrosamente bonitos. O jovem Maiakóvski flertou com a vovó Vália, mas ela preferiu o estudante Kólia Iákovlev. A filha deles, Vava (Vera), cresceu e se tornou a moça mais bonita (sorriso de Branca de Neve, uma linda trança, olhos azuis) da Academia Militar de Veículos Blindados, e a minha mãe, desde os catorze anos, como era muito alta, quando saía na rua sempre encontrava cavalheiros querendo acompanhá-la, em especial soldados, ainda mais porque ela respondia ingenuamente às perguntas sobre como se chamava e onde morava — mas não dizia quantos anos tinha, o que afligia a mãe e a irmã. Na família, chamavam a minha mãe de Liulia, ela era a mais nova e sempre foi considerada uma criança inexperiente. Isso apesar de estudar obstinadamente, de ler montanhas de livros na escola e na faculdade de literatura. Em sua escrivaninha havia pirâmides de tomos (só sobre a Idade Média eram três antologias enormes). Ela estudava literatura com tanta seriedade que encarava a leitura normal como uma profanação. A respeito da sobrinha da terceira mulher de seu avô (Dêdia), que bem na época da fome ia sempre ao Metropol pegar livros emprestados com o Dêdia, Liulia dizia: “Claro, ela é uma heroína de Turguêniev, sentada num banco, na beira de um laguinho, com um romance nas mãos”. Na verdade, a sobrinha ficava para jantar.

O jovem Maiakóvski flertou com a vovó Vália, mas ela preferiu o estudante Kólia Iákovlev. A filha deles, Vava, se tornou a moça mais bonita da Academia Militar

Para a jovem Liulia, a literatura era objeto de estudo! Mas, em segredo, ela amava a obra do jovem Górki.

E acabou que Liulia, uma moça ingênua, séria e totalmente inocente, ficou grávida no dia do seu aniversário, 23 de agosto de 1937, numa datcha em Serébriani Bor.

Na infância escutei com os meus próprios ouvidos o que ela disse para a nossa zeladora, Gránia, barriguda de oito meses, que estava reclamando que por muito tempo não conseguiu engravidar. Estávamos no portão e a minha mãe riu, apontando para mim: “Já comigo foi da primeira vez…”.

Naquele verão, eles estavam morando em Serébriani Bor.

Era uma datcha do governo, do irmão mais velho da vovó, Vladímir Ílitch Veguer, um velho bolchevique, dirigente de uma célula partidária do POSDR e um dos organizadores da famosa insurreição com barricadas de Krásnaia Prêsnia, em 1905. No partido, usava o codinome de Povóljets.

(Agora eu trabalho entre as estações de metrô Barrikádnaia e Ulítsa 1905 Goda. (1) E ninguém sabe que tudo isso foi obra do meu tio-avô Vladímir Ilítch, todos os nomes, aquelas pedras da calçada reviradas e as barricadas, todas aquelas futuras esculturas no estilo “As pedras da rua são uma arma do proletariado”. Até hoje o transporte de Moscou faz barulho por causa de uma pedra histórica, deixado de propósito entre a praça Vosstánia e o metrô Barrikádnaia.)

Povóljets, aliás, aceitou no partido um Maiakóvski adolescente, de quinze anos; depois disso, foi parar na prisão Butírskaia e posteriormente saiu do partido.

Maiakóvski ia ao prédio para encontrar-se com Vladímir Ílitch-Povóljets, e lá conheceu as irmãs mais novas dele, Vera e Vália Veguer. Ele se apaixonou por Válietchka imediatamente.

Dizia-se no folclore familiar que Maiakóvski e Burliuk saíram do prédio usando blusa, Maiakóvski com a famosa blusa amarela, Burliuk com uma lilás. Mamãe me contava que os meninos vestiram blusas das irmãs — só que as meninas eram pequenas e Maiakóvski, enorme. Tenho minhas dúvidas. Talvez os rapazes tenham provado só de brincadeira. Mas é verdade que, na época, as alunas usavam blusas bufantes, franzidas.

A minha mãe também dizia que uma vez, em 1930, ela e a mãe estavam no bonde e ali se depararam com Maiakóvski. A minha avó disse a ele: “Esta é a minha filha”. O poeta estava com uma aparência meio extenuada, cansada. Era o seu último ano de vida.

***

Em 1937, Vladímir Ílitch Veguer-Povóljets construiu uma casa fora da cidade, no quilômetro 42 da ferrovia de Kazan, na cooperativa de trabalhadores da ciência, e no verão deu a datcha em Serébriani Bor para a irmã Valentina (minha futura avó) e a filha dela.

Na primavera daquele ano maldito ocorreram coisas terríveis. Em maio, um irmão da minha avó, Jênia Veguer, membro do Politburo da Ucrânia e secretário do comitê regional do partido, foi preso e submetido a interrogatório; a irmã dele, Lénotchka Veguer, foi presa e condenada ao paredão de fuzilamento (ela havia chefiado a secretaria de Kalínin por muitos anos). O marido de Ássia, irmã da minha avó, foi preso e executado, e quase um ano depois levaram a própria Ássia; ela passou muitos anos no Gulag. Na época, a condenação ao fuzilamento recebia o nome suave de “dez anos sem direito a correspondência”.

Os restantes tiveram que ficar esperando visitas-surpresa. Era uma tortura.

Toda noite a minha avó escutava uma espécie de barulho, como se um carro estivesse parando em algum lugar ao longe: a porteira se abria e se escutavam com muita clareza passos pelo cascalho…

Naqueles anos, iam buscar as pessoas justamente à noite, lacravam os apartamentos e ninguém nunca mais via aquela família.

Toda noite, alguém claramente andava da porteira até a casa. O cascalho fazia barulho. Mas não entravam na casa. Era preciso esperar. Passou a ser impossível dormir. Ela tinha medo de sair para olhar.

Foi ao psiquiatra. Ele lhe disse: “Fique conosco, aqui vai estar segura”.

Ela ficou. Pelo visto, isso a salvou. Assim, não a levaram presa.

Os que aguentavam mais tempo, não confessavam ser espiões, não assinavam o papel, esses eram os mais torturados, e depois eram executados

A minha avó era uma mulher excepcionalmente inteligente e perspicaz. Sabia que levariam todos — menos os loucos com atestado. A jovem esposa de Jênia Veguer, Solange Korpatchóvskaia, uma linda pianista, metade francesa, depois da prisão do marido também foi detida — mas ficou louca na cela de interrogatório noturno, e então foi solta. Quando o Dêdia foi vê-la, ela soluçava sem prarar, sentada na cama, grisalha em seus anos de juventude, vestida de preto, esgotada, e gritava palavras incoerentes. Meu avô era médico. Mas não ficou na cabeceira dela, deu meia-volta e saiu sem dizer palavra. Não sei por quê. Talvez ele mesmo quisesse gritar internamente aquele tempo todo, mas se continha. E ela, louca, era livre em seus berros. Jênia era a esperança dele, o orgulho dele (com o mais velho, Volódia, não falava desde os tempos da revolução), Lénotchka era a filha caçula, a preferida. Possivelmente não tinha força humana para aguentar aquele grito.

O destino subsequente da nora foi terrível — a mãe de Solange a pegou, junto com o filho pequeno, e os levou para a Ucrânia. A guerra começou, chegaram os alemães. Solange, o filho e a mãe, junto com a colônia de judeus do gueto, foram enterrados vivos.

Mas isso aconteceu depois.

Na época descrita, o verão de 1937, Solange, pelo visto, ainda estava presa, não se conseguia nenhuma notícia de Lénotchka, de Jênia e do marido de Ássia (mesma formulação, “sem direito a correspondência”). Jênia e Lénotchka foram presos em 23 e 24 de maio de 1937. Lénotchka foi fuzilada em 3 de setembro. Jênia, em 21 de novembro.

Depois me disseram que os que aguentavam mais tempo, não confessavam ser espiões, não assinavam o papel, esses eram os mais torturados, e depois  eram executados.

Naquele verão terrível, a minha futura família se escondeu em Serébriani Bor. Às vezes as pessoas simplesmente iam embora de casa, e os enviados da NKVD (2) não as encontravam.

A minha mãe contava que Stefan (que em breve se tornaria o meu pai, também, como ela, aluno do Instituto de Filosofia, Literatura e História de Moscou [IFLI], mas não da Faculdade de Letras, e sim de Filosofia) ia vê-la naquele verão na datcha de Serébriani Bor… Ela não especificou quando isso acontecia nem onde eles se viam. A julgar por tudo, à noite, e não em casa.

Mais tarde fiquei sabendo que o meu pai era da província de Nikoláiev, povoado de Vérkhini Rogátchik, e na grande família dele (isso já foram outras pessoas que me disseram) muita gente sofria de tuberculose. Ele chegou a Moscou doente, sem nada, como Lomonóssov, (3) ingressou na Faculdade dos Trabalhadores, (4) na qualidade de camponês pobre com capacidades de destaque, e depois na IFLI. Não tinha um canto próprio. De maneira geral, não ia a médicos. Talvez tivesse medo de ser internado em um hospital, teria que perder um ano. Ia vivendo, tossindo um pouco. Era alto, tinha o cabelo cacheado, era bonito. Minha mãe, aluna aplicada da faculdade de literatura, era bonita, contida, séria, não entendia absolutamente nada da vida e estava sempre nos livros. Além disso, a família dessa criatura encantadora morava no melhor prédio de Moscou, o Metropol. Antes, a mãe dela trabalhara no Kremlin, depois no comitê de ciência. A irmã estudava na Academia Militar. Por isso, o meu futuro pai provavelmente morria de medo delas.

Isso não excluía a possibilidade de que, à noite, escondido da mãe e da irmã de sua amada, Stefan fosse, como um ladrão noturno, do último trólebus até a cancela, depois atravessasse o cascalho até a janela e a chamasse para um encontro. É o que eu acho. Aqueles passos que nunca terminavam com uma batida na porta!

A minha avó estava absolutamente saudável em termos psicológicos.

Essa é a minha versão daqueles acontecimentos.

Em todo caso, havia passos, mas os meus parentes não foram levados para a Lubianka.

***

Em suma, nasci em 26 de maio de 1938, mais ou menos nove meses depois do aniversário da minha mãe.

Mas não me lacraram dentro do apartamento, como acontecia com os bebês de quem tinha sido preso, e eu cresci na casa da minha avó, sob o som dos grandes textos da literatura russa; mas sobre isso vou falar mais adiante.

***

Mais ou menos dois anos depois dos acontecimentos descritos aqui, meus parentes voltaram para casa e viram que a porta que levava ao quarto deles estava lacrada mesmo assim. Ou seja, a minha avó foi na frente, tentou abrir a porta, não conseguiu, deu meia-volta e abandonou aquele apartamento para sempre, sem dizer palavra…

Vava, que vinha logo atrás, por sua vez, se aproximou da porta e viu que na maçaneta havia um arame enrolado, e que no arame tinha um lacre de chumbo pendurado.

Talvez, se tivessem voltado antes para casa, já tivessem sido levados. Mas, como sempre, eles se atrasaram. A nossa família está eternamente atrasada, de geração em geração.

***

Do prédio dela, o Metropol, já havia desaparecido muita gente.

Foi assim que Vava se despediu de sua vizinha de parede, cujo sobrenome ela não lembrava exatamente, algo como Kaliguina. Era secretária do comitê e ia frequentemente a Moscou, para o seu quarto no Metropol, sempre com um grupo de assessores homens.

Daquela vez, Vava entrou no apartamento e viu a vizinha acompanhada por dois homens: um, de uniforme, ia na frente, o outro, em trajes civis, ia atrás dela.

Vava a cumprimentou alegremente. Kaliguina se virou e apertou a boca.

Vava disse para a mãe:

— Levaram Anna Stepánovna no meio de dois.

A minha avó nem mexeu a cabeça.

***

Sem roupas, coisas nem livros, depois de perder todos os móveis, cobertores e louça, sem falar nos quadros, eles foram falar com o Dêdia, com Iliá Serguêievitch Veguer, na portaria vizinha, e se instalaram na casa dele.

E, daquele nosso apartamento anterior no Metropol, me ficaram na memória dois quartos conjugados, com uma porta no meio, e acima da porta um quadro: sobre um fundo cor de esmeralda, uma cabeça feminina de perfil, com o pescoço arqueado e cabelos claros, ruivos, parecendo um capacete. [Tradução de Cecília Rosas]

Notas da tradutora
1. Em russo, Rua Ano 1905.
2. Órgão que cuidava da repressão política na URSS até meados dos anos 1940.
3. Mikhail Lomonóssov, pensador e cientista russo do século 18. Conta-se que era filho de pescadores e chegou a Moscou a pé, sem nada.
4. Instituição que existiu de 1919 até meados dos anos 1930, com o objetivo de preparar trabalhadores e camponeses para o ensino superior.

Quem escreveu esse texto

Liudmila Petruchévskaia

Escreveu Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.