As Cidades e As Coisas,

O mapa da enfermidade

Como a coleta de dados se tornou uma das ferramentas mais poderosas para lutar contra uma epidemia

01jan2021 | Edição #41 jan.2021

O rio Lea nasce nos subúrbios ao norte de Londres e serpenteia para o sul até chegar à região do East End, onde vai dar no Tâmisa, na altura de Greenwich e de Isle of Dogs. No começo do século 18, o rio era ligado a uma rede de canais usada pelos cada vez mais numerosos estaleiros e fábricas da área. No século seguinte, o Lea havia se tornado um dos cursos d’água mais poluídos de toda a Grã-Bretanha, carregando os dejetos daquelas que eram conhecidas como “usinas de fedor” da cidade. 

Em junho de 1866, um operário de sobrenome Hedges morava com a mulher às margens do Lea, num bairro chamado Bromley-by-Bow. Hoje, não se sabe quase nada sobre Hedges e a mulher além dos tristes fatos ligados à sua morte: no dia 27 de junho daquele ano, ambos morreram de cólera. 

As mortes em si não eram de chamar a atenção. O cólera assombrava Londres desde o seu surgimento por ali, em 1832, e as epidemias podiam matar milhares de pessoas em questão de semanas. Embora os índices da doença estivessem caindo nos últimos anos, algumas mortes por cólera tinham sido registradas nas semanas anteriores, e não era inédito que duas pessoas que moravam na mesma casa morressem da doença no mesmo dia.

Mas a morte do sr. e da sra. Hedges acabou sendo o início de um surto muito maior. Em poucas semanas, os bairros operários ao longo do Lea estariam sofrendo uma das piores epidemias de cólera da história de Londres. Os jornais faziam o mesmo relato mórbido que tem sido a nossa obsessão na era do vírus SARS-CoV-2, mostrando a aterrorizante curva ascendente de um crescimento descontrolado. Vinte mortes por cólera foram registradas no East End na semana do dia 14 de julho. Na semana seguinte, o número foi 308. Em agosto, o número semanal de óbitos tinha chegado a quase mil. Londres não vivia um surto grave de cólera havia doze anos. Mas, na segunda semana de agosto, os sinais eram inconfundíveis: a cidade estava sob ataque. 

Informação

Tanto naquela época como hoje, a primeira linha de defesa era a informação. Os londrinos podiam acompanhar a marcha do cólera pelo East End quase em tempo real, graças principalmente ao trabalho de um homem: um médico e estatístico chamado William Farr. Durante quase toda a era vitoriana, Farr supervisionou a coleta de estatísticas de saúde pública na Inglaterra e no País de Gales. Sem exagero, pode-se dizer que o ambiente jornalístico que nos cerca hoje em dia foi inventado por Farr: um mundo onde os números mais recentes, que mostram o progresso do vírus — quantas intubações hoje? qual é a taxa de crescimento de internações? —, tornaram-se a sequência de dados mais importante que existe, pondo em segundo plano as velhas métricas de índices da Bolsa e das pesquisas de intenção de voto. 

A nossa principal proteção no momento atual da Covid-19 é aquela que Farr começou a construir quase dois séculos atrás: a coleta e análise de dados

Em 1866, Farr tinha passado a acreditar na teoria sobre o cólera que fora proposta pelo médico londrino John Snow mais de uma década antes — a ideia de que a doença estava sendo transmitida pela água de beber, o que mais tarde se saberia ser verdade. Por isso, quando as mortes começaram a aumentar no East End, Farr imediatamente passou a investigar as fontes de água daquela parte da cidade. 

Em meados da década de 1860, o abastecimento de uma parcela significativa das comunidades de operários era feito por empresas privadas, que administravam o encanamento que ia até endereços específicos, assim como as empresas de TV a cabo fazem hoje. Farr decidiu classificar as pessoas mortas no surto recente não por residência, mas pela empresa que fazia o seu abastecimento de água. Os dados coletados revelaram um padrão claro: um enorme número de doentes bebia a água que chegava pelo encanamento da empresa East London Waterworks.

A empresa afirmou que a água era filtrada de maneira eficiente, em novos reservatórios cobertos. Mas investigadores logo encontraram a origem da contaminação: um dos reservatórios da East London Waterworks não tinha sido corretamente isolado das águas do rio Lea, que passava pelas cercanias. Ao olharem os registros de morte do início do verão, os investigadores se depararam com a do sr. e da sra. Hedges, que moravam perto do reservatório. Quando a residência do casal foi examinada, descobriu-se que os dejetos do banheiro eram despejados diretamente no rio, o que introduziu a bactéria do cólera na fonte de água e levou à ocorrência do surto. Foi uma investigação brilhante, feita com velocidade e eficiência extraordinárias. E provou ser importante: o surto de cólera de 1866 foi o último surto significativo da doença na história de Londres.

William Farr foi um dos primeiros a pensar sistematicamente em usar informações sobre surtos de doenças — sobre como elas se espalham no espaço e ao longo do tempo — para controlá-los enquanto acontecem e minimizar surtos futuros. A área que ele ajudou a inventar passou a ser chamada de epidemiologia, mas, no início, era conhecida por outro nome: estatística vital (de vita, ou vida, em latim). As inovações nessa área são diferentes do nosso modelo tradicional de descobertas da medicina: não são vendidas como remédios milagrosos ou novas tecnologias de imagem. Em essência, são simplesmente novas maneiras de contar, novas maneiras de discernir padrões. 

Neste estágio da pandemia do coronavírus, nós nos encontramos numa situação não muito diferente daquela dos vitorianos, apesar da diferença gigantesca em saber científico, tecnológico e médico que nos separa deles. Não temos vacinas para proteger os não infectados e ainda não surgiu nenhum remédio que cure a Covid-19. A nossa principal proteção no momento é aquela que Farr começou a construir quase dois séculos atrás: a coleta e análise de dados. Os dados nos permitem ver onde a doença está se espalhando e onde os sistemas de saúde correm o risco de entrar em colapso. Eles nos permitem calcular taxas de infecção e mapear regiões onde o risco de contágio é mais alto com tanta exatidão que elas podem variar de CEP para CEP. 

Um dia, a medicina vai nos proteger do SARS-CoV-2, mas, por enquanto, a estatística vital é a melhor defesa que temos. Múltiplos novos experimentos de coleta e análise de informação, como o do pioneiro William Farr, surgiram durante a pandemia — experimentos que podem salvar milhares de vidas antes de a crise terminar. E que podem impedir que novas pandemias surjam no futuro.

Macropadrões

Nascido em 1807, numa família rural de poucos recursos, William Farr foi um menino precoce que recebeu apoio de um benfeitor rico e de mentores quando era adolescente; ele se tornou aprendiz de um médico local e, mais tarde, foi estudar medicina em Paris e na University College London. Aos vinte e tantos anos de idade, abriu um consultório médico em Londres. Mas a sua verdadeira paixão era a estatística vital: Farr tornou-se membro da London Statistical Society pouco depois de sua fundação e passou a acreditar que compreender macropadrões de mortalidade poderia ser uma ferramenta tão eficiente para salvar vidas quanto qualquer intervenção médica tradicional. 

Na verdade, em razão do estado lamentável da medicina na década de 1830, os dados eram um instrumento muito mais poderoso. O uso de dados para compreender padrões de vida e de morte tinha interesse quase exclusivamente comercial ao longo do século 18, uma ciência desenvolvida em grande medida para os objetivos mercenários de empresas de seguros. Mas Farr e alguns poucos colegas viram o potencial da estatística vital como uma ferramenta de reforma, um método de diagnosticar os males da sociedade e iluminar as suas desigualdades. 

Depois de publicar alguns artigos na revista The Lancet analisando dados médicos, Farr foi contratado em 1837 como “compilador de informações” do General Register Office (GRO), novo órgão do governo cuja tarefa era registrar nascimentos e mortes na Inglaterra e no País de Gales. Por insistência de Farr, o GRO começou a incluir muito mais dados em seus registros de mortalidade, incluindo a causa de morte, a ocupação e a idade do defunto.

No GRO, onde trabalhou durante quase toda a sua carreira, Farr foi responsável por pegar dados brutos e dar-lhes significado, descobrindo nos números tendências interessantes, comparando os resultados na área de saúde em diferentes subgrupos da população e inventando novas formas de visualização. Suas investigações estatísticas às vezes estavam na origem de opiniões perturbadoras. Ele passou anos desenvolvendo uma teoria bizarra sobre a ligação entre doenças e a elevação topográfica, o que levou a ideias xenofóbicas sobre a inferioridade dos povos das terras baixas. Mas o legado da estatística vital de Farr que chegou aos nossos dias é igualitário: ele expôs as desigualdades da saúde pública e usou o pensamento científico para acabar com preconceitos muito disseminados nas classes mais abastadas, de que havia uma relação causal entre as doenças e a depravação moral das comunidades de baixa renda. 

Contar os mortos não era, por si só, uma técnica nova: os guarda-livros das paróquias de Londres publicavam “notas de mortes” semanais desde a era elisabetana. Mas Farr inventou novas maneiras de tornar essas informações úteis. Coletar e publicar dados não era apenas questão de relatar os fatos, mas uma arte exploratória, mais sutil: testar e contestar hipóteses, construir modelos de explicação. Como Farr escreveu num ensaio publicado no ano em que passou a trabalhar no GRO, “fatos, por mais numerosos que sejam, não constituem uma ciência. Assim como inúmeros grãos de areia na praia, fatos sozinhos parecem isolados, inúteis, amorfos; apenas quando comparados, quando dispostos em suas relações naturais, quando cristalizados pelo intelecto, eles constituem as verdades eternas da ciência”.

A primeira pergunta a que Farr respondeu usando estatísticas também é relevante para a crise atual: até que ponto a densidade urbana contribuía para a taxa de mortalidade? Talvez em razão de sua própria história de vida — a de alguém que tinha sido criado na região agrícola de Shropshire e depois passara a viver na maior cidade do planeta —, Farr decidiu dedicar um de seus primeiros estudos às diferenças na saúde pública do campo e da cidade.

Ele foi pioneiro não apenas em coletar dados, mas também em criar novas e engenhosas maneiras de ilustrá-los. Uma forma de medir a saúde de uma sociedade é aquilo que, na época de Farr, se chamava “tabela da vida”: definir a taxa de mortalidade de uma população específica por idade. (Tabelas da vida são o que nos permitiu ver que a letalidade da Covid-19 tem uma concentração desproporcional entre os idosos, ao contrário da pandemia de gripe de 1918, que matou um número extraordinário de jovens adultos.)

Num de seus primeiros relatórios, Farr fez um experimento com uma forma engenhosa de ilustrar essas diferenças na saúde pública, valendo-se de dados coletados em três comunidades distintas: Londres, que era uma área metropolitana; Liverpool, que era uma área industrial; e Surrey, que era uma área rural. Era, realmente, um conto de duas cidades — e de uma área do interior. Vistas como um tríptico, as ilustrações passavam uma mensagem clara: densidade era destino. 

Em Surrey, o aumento da mortalidade após o nascimento era uma curva ascendente e suave, feito uma duna que se ergue acima do nível do mar. Nas cidades, em comparação, a elevação se parecia mais com as falésias de Dover. Aquela subida rápida condensava milhares de tragédias individuais em uma imagem vívida e escandalosa: em Liverpool, mais de metade de todas as crianças morriam antes de completar quinze anos.

A primeira pergunta a que Farr respondeu é relevante para a crise de hoje: até que ponto a densidade urbana contribuía para a taxa de mortalidade? 

Apesar desses números sombrios, Farr continuou a acreditar que a crise sanitária existente nas cidades industriais podia ser mitigada. “Será inevitável a mortalidade excessiva nas cidades?”, escreveu ele no relatório anual do GRO de 1840. “Os primeiros autores que estabeleceram de maneira satisfatória a alta mortalidade das cidades tinham uma visão lúgubre e, talvez, fanática da questão. As cidades foram declaradas vórtices de vício, infelicidade, doença e morte; foram proclamadas ‘os túmulos da humanidade’.” No entanto, continuava ele, “há motivo para acreditar que a aglomeração da humanidade em cidades não é inevitavelmente desastrosa”.

Nesse mesmo relatório, Farr voltou sua atenção para outro padrão intrigante nos dados que tinha coletado: aquilo a que chamou leis de ação das epidemias, agora conhecidas pelos epidemiologistas como Lei de Farr. Ao analisar um surto de varíola em Liverpool, Farr dividiu os números de mortes em dez períodos diferentes. “A mortalidade cresceu até o quarto período registrado; houve 2.513 mortes no primeiro período, 3.289 no segundo, 4.242 no quarto; pode-se perceber de imediato que esses números aumentaram a uma taxa muito próxima dos 30%. Mas essa taxa de aumento”, observou Farr, “é de apenas 6% no período seguinte, mantendo-se então estacionada, como um projétil no topo da curva que é destinado a fazer.” 

A Lei de Farr foi a primeira tentativa de descrever o aumento e a diminuição da transmissão de doenças contagiosas de maneira matemática. Todos os modelos que causaram tanta angústia privada e tanto escrutínio público — os modelos da Imperial College London que fizeram o primeiro-ministro Boris Johnson desistir da estratégia inicial de atingir a imunidade de rebanho; as projeções sobre a Covid-19 da Universidade de Washington, que tanto influenciaram a Casa Branca de Trump —, todas essas previsões são descendentes das leis de ação que Farr esboçou originalmente em 1840. Quando falamos em achatar a curva, a curva em questão foi desenhada pela primeira vez por William Farr. 

Os cientistas vitorianos teriam reconhecido de imediato muitas das categorias básicas de dados coletadas por epidemiologistas que estão trabalhando com a Covid-19: infecções, mortes, localizações etc. Os estatísticos vitais de hoje obviamente têm acesso a uma gama maior de informações — resultados de testes de anticorpos, comorbidades das vítimas, até mutações genéticas do vírus — do que aquelas que Farr era capaz de reunir. E têm softwares que lhes permitem construir modelos para projetar a curva epidemiológica que Farr foi o primeiro a identificar. 

Buracos

Mas a pandemia do coronavírus também revelou alguns buracos cruciais no modo como coletamos dados no início de um surto. Por mais improvável que isso pareça, dada a existência de organizações como o Center for Disease Control (CDC) e a Organização Mundial da Saúde, quando o coronavírus estava começando a se espalhar não havia nenhuma base única de dados na qual as informações sobre todos os casos conhecidos podiam ser acessadas e analisadas por agentes e pesquisadores de saúde pública.

“Nunca houve um esforço bem-sucedido de compartilhamento de fontes de dados abertos durante nenhuma das epidemias modernas”, diz Samuel V. Scarpino, que é o chefe do Emergent Epidemics Lab (Laboratório de Epidemias Emergentes) da Universidade Northeastern. “A grande maioria de dados sobre saúde pública coletados durante epidemias ainda é organizada com caneta, papel, Excel e PDF.”

Scarpino e mais uns poucos voluntários que incluíam o pesquisador de Oxford Moritz Kraemer e um doutorando da Universidade Tsinghua, em Beijing, chamado Bo Xu, fundaram uma organização, improvisada no final de janeiro, para criar o equivalente dos registros de óbitos de Farr do século 21: um arquivo único de dados abertos de todos os casos de Covid-19 registrados no mundo. No começo de fevereiro, o Open Covid-19 Data Curation Group (grupo de trabalho de dados abertos sobre a Covid-19) já tinha reunido registros detalhados de 10 mil casos. Hoje, uma rede informal de centenas de voluntários reuniu registros de mais de 70 milhões de casos em 218 países ao redor do globo.* Talvez seja o retrato mais exato da maneira como o vírus se espalhou pela população humana.

É claro que o maior valor desse tipo de sequência de dados são os indícios que ele pode nos dar sobre a progressão futura da doença e sobre como essa progressão pode ser interrompida. Mas diga-se mais uma vez: o trabalho de construir esses modelos tem sido feito de maneira inteiramente improvisada, por algumas poucas instituições acadêmicas ao redor do mundo. Caitlin Rivers, epidemiologista da Johns Hopkins University, argumenta que a pandemia do coronavírus deixou evidente que uma inovação crucial e necessária será criar um tipo novo de instituição, que ela chama de um “centro de previsão de epidemias”. 

Rivers faz uma analogia com instituições como o Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos. “Na virada do século, aconteceram algumas tempestades grandes que tiraram um número terrível de vidas e também tiveram enormes consequências econômicas, então na época surgiu um interesse em descobrir como prever o tempo”, explica Rivers. Com investimentos significativos, River acredita que “vamos conseguir chegar ao mesmo patamar em que estamos no Serviço de Meteorologia, que nos dá previsões confiáveis para informar nossa vida cotidiana enquanto público, e também para ajudar os tomadores de decisões a compreender qual é a melhor maneira de reagir a esses surtos”. 

Previsões têm qualidade igual à dos dados em que foram baseadas e, quando se trata de surtos de doenças, a maior parte dos dados coletados — mesmo em arquivos abrangentes como o criado pelo grupo de dados abertos sobre a Covid-19 — tem uma enorme desvantagem: a informação é registrada tarde demais. Números de hospitalizações e mortes são estatísticas vitais, sem dúvida, porém mapeiam os estágios finais do progresso da doença. No caso da Covid-19, quando uma pessoa chega ao hospital, já se passaram em média dez dias desde o contato inicial com o vírus. “Os registros na área de saúde pública em geral são feitos muito tarde”, diz o epidemiologista Larry Brilliant, que ajudou a erradicar a varíola nos anos 1970. “Historicamente, eles acontecem logo antes do pico de um surto, porque, conforme as pessoas vão ficando mais assustadas, elas vão ao médico, e o médico contata um agente de saúde pública e registra.” 

Quando se trata de surtos de doenças, a maior parte dos dados coletados tem uma enorme desvantagem: a informação é registrada tarde demais

Com uma doença como a Covid-19, na qual vetores pré-sintomáticos e assintomáticos podem espalhar o vírus, a demora nos registros pode ser a diferença entre um surto descontrolado e a contenção efetiva. Um caso típico de Covid-19 que acaba em morte segue esta linha do tempo, que pode se estender por trinta dias ou mais: 

Infecção › Incubação › Contágio pré-sintomático › Sintomas e contágio › Consulta ao médico › Hospitalização › Terapia intensiva › Morte 

No regime-padrão, mesmo no melhor dos cenários, a coleta de dados só começa no décimo dia, durante a consulta ao médico. A Covid-19 está na origem de uma série de experimentos inspiradores, criados para levar a coleta de dados para um ponto anterior da linha do tempo. Alguns deles envolvem algo chamado “vigilância sentinela” — testes em massa, feitos num estágio inicial, em populações críticas que podem estar em risco. “Existem testes para o indivíduo que precisa entender se tem essa doença, se precisa se isolar ou procurar ajuda”, diz Lorna Thorpe, diretora do departamento de epidemiologia da faculdade de medicina da Universidade de Nova York. “Mas, para controlar o surto, você precisar saber onde ele está, precisa estar um passo à frente.” Assim como o surto de 1866, a Covid-19 atinge mais as comunidades de baixa renda, que em geral têm acesso reduzido ao sistema de saúde, onde a maior parte dos dados é coletada. “Muitas vezes, as comunidades que precisam da nossa atenção durante o surto, aquelas que têm mais probabilidade de ser atingidas no começo, também são aquelas sobre as quais nós sabemos menos”, diz Scarpino. 

Em parte em razão do estoque limitado de testes, os dados sobre a Covid-19 coletados nos primeiros meses eram quase inteiramente sobre pessoas que estavam com sintomas graves e procuraram hospitais. Mas um programa de vigilância sentinela poderia ter se concentrado em comunidades — como asilos ou bairros de baixa renda — que ainda não tinham experimentado infecções sintomáticas, com o potencial de detectar esses surtos antes que eles se tornassem irrefreáveis. 

Thorpe dá como exemplo o sucesso do Seattle Flu Study (Estudo da Gripe em Seattle), iniciativa que teve início em 2019 e que construiu tendas de testagem, analisou amostras de hospitais e distribuiu testes de swab nasais, que podiam ser feitos em casa, para uma larga parcela da população da cidade, pedindo às pessoas que mandassem amostras caso tivessem sintomas de infecção respiratória. É significativo que o programa tenha sido o primeiro a detectar a transmissão comunitária do SARS-CoV-2 nos Estados Unidos.

O Seattle Flu Study foi uma variação de outra técnica nova que já teve um papel importante na luta contra a Covid-19: a “vigilância sindrômica”. A ideia é simples: acrescentar aos dados oficiais de pacientes que entram no sistema de saúde dados que rastreiem o surgimento de sintomas da doença antes que as pessoas procurem um médico ou um hospital. Um projeto influente que foi um dos primeiros do tipo a usar essa abordagem foi um programa chamado Google Flu Trends, criado em 2008, em parceria do Google com o CDC. O serviço não rastreava sintomas diretamente, mas analisava padrões de buscas no Google associados à gripe, como, por exemplo “meu filho está com febre” e “dor e calafrio”. Ao mapear geograficamente essas buscas, o serviço pretendia identificar regiões de alto contágio de gripe dias ou semanas antes que elas fossem detectadas pelo CDC. 

Então, em 2011, um epidemiologista do Children’s Hospital de Boston chamado John Brownstein ajudou a criar o site Flu Near You (Gripe Perto de Você), que usa informações diretamente fornecidas por usuários para registrar febre e outros sintomas de gripe, através de um grupo pequeno, porém estatisticamente representativo de voluntários. No início do surto de SARS-CoV-2, Brownstein criou uma versão nova chamada Covid Near You (Covid Rerto de Você).

A Covid-19 atinge mais as comunidades de baixa renda, que têm acesso reduzido ao sistema de saúde, onde a maior parte dos dados é coletada

“A maior parte das pessoas que pegam Covid tem sintomas leves e provavelmente não vai interagir com nenhum sistema de saúde”, diz Brownstein. “Dados sobre sintomas fornecidos por elas próprias podem ajudar a preencher lacunas, principalmente se a testagem for limitada.” Quem entra no site tem de responder a algumas perguntas simples: Qual é o seu CEP? Como você está se sentindo? Caso não esteja se sentindo bem, quais são os seus sintomas? Os dados coletados permitem que o serviço mapeie regiões de alto contágio antes que ele seja detectado pelas clínicas ou pelos relatórios oficiais de saúde dos diferentes condados, conseguindo levar a linha do tempo da coleta de dados cinco dias para a esquerda. 

No final de março, quando grande parte do foco estava na explosão de casos em Nova York, o Covid Near You já tinha começado a detectar um aumento dos sintomas da Covid-19 em áreas menos densamente povoadas. “Apesar das regiões urbanas de alto contágio”, diz Brownstein, eles viram sinais de surtos em comunidades rurais, “principalmente em lugares onde as pessoas têm casas de veraneio.”

As novas tecnologias também tornaram a vigilância sindrômica mais possível. A Kinsa, start-up sediada em San Francisco, vende um termômetro conectado à internet desde 2014. Segundo Inder Singh, que é executivo-chefe, fundador da Kinsa e que gerenciou o trabalho da Clinton Foundation com doenças infecciosas, a visão original era que a empresa detectasse esses padrões iniciais de doenças sem forçar as pessoas a mudar sua rotina. “A ideia era esta: vamos pegar um comportamento existente, a única coisa que as pessoas fazem em casa quando uma doença ataca”, explica Singh. “Elas pegam um termômetro.” 

Do ponto de vista do consumidor, a interação com o termômetro da Kinsa é bem simples, mas nos bastidores o aparelho manda informações anônimas e geolocalizadas com os resultados para os servidores da empresa. A nova sequência de dados permite que a Kinsa faça o que chama de mapas de previsão sanitária do país inteiro, com dados em tempo real sobre febres atípicas registrados num nível de precisão que varia conforme o condado. 

No dia 4 de março, os mapas da Kinsa começaram a rastrear um aumento estatisticamente significativo no número de febres em Nova York, dezenove dias antes de a cidade entrar em lockdown total. (O primeiro caso na cidade foi registrado no dia 1º de março.) Em 10 de março, o número de pessoas que registravam temperatura elevada no Brooklyn estava 50% acima do normal, indicando que o vírus já estava se espalhando de forma descontrolada pelas cinco regiões da cidade, embora o número oficial de casos ainda fosse duzentos. 

Uma limitação dos nossos dados atuais tem a ver com a geografia, não com o tempo. Como observa Marc Gourevitch, chefe do departamento de saúde da população na faculdade de medicina da NYU, a maior parte das ferramentas que usamos para mapear surtos não são detalhadas o suficiente. “Em muitas cidades e regiões urbanas”, diz Gourevitch, “pode haver uma grande variação entre duas áreas que englobam apenas dois ou três quarteirões, ou uma fração de quilômetro, em termos das condições que realmente influenciam a saúde. Então, se você quiser observar variações nos índices de saúde, risco e resultados, precisa ter uma visão detalhada da geografia com a qual está lidando, se quiser pensar em estratégias de proteção nessas escalas pequenas. A escala em questão é aquela que determina fundamentalmente a saúde: pode ser densidade, acesso a boas escolas, acesso à qualidade do ar — todo tipo de influência que varia em pequena escala.” O nosso padrão é organizar geograficamente, por condado, os nossos dados sobre saúde. Mas, numa cidade como Nova York, onde um único condado contém milhões de pessoas, essa escala é completamente errada para rastrear um vírus que se move depressa.

Privacidade

Em muitos casos, esse foco amplo foi estabelecido deliberadamente como uma proteção à privacidade. Alguns anos atrás, Gourevitch ajudou a organizar uma base de dados on-line chamada City Health Dashboard (painel de saúde da cidade), que mostra a expectativa de vida média de uma comunidade por setor censitário, deixando claras as enormes desigualdades nos índices de saúde em comunidades que vivem a apenas alguns quarteirões umas das outras. Mas até mesmo essa fonte era controversa. “Levou anos e muito pressão para convencermos as autoridades estaduais e o CDC a contribuir com as estimativas de expectativa de vida por setor censitário”, diz Gourevitch. “Foi um esforço de muitos anos, devido a preocupações legítimas sobre a questão da privacidade.” 

Se você quiser observar variações nos índices de saúde, risco e resultados, precisa ter uma visão detalhada da geografia com a qual está lidando

Para Gourevitch, uma solução em potencial é uma espécie de obscurecimento geográfico para dados sobre surtos. Na famoso mapa do surto de cólera feito por John Snow em 1834 — aquele que acabou levando à descoberta de que a doença era causada pela água contaminada —, ele documentou mortes com uma precisão que chegava a endereços individuais, revelando que um alto número ocorrera ao redor de um poço de água para beber muito usado. Mas, no meio de um surto como o da Covid-19, não é preciso fechar tanto o foco para ter uma compreensão significativa dos lugares por onde o surto está se espalhando. 

Em vez de um alfinete num mapa para indicar uma infecção num endereço específico, Gourevitch sugere que nós deliberadamente tornemos os nossos alvos menos precisos: talvez um quarteirão, não um endereço específico. Esse nível de detalhamento seria alto o suficiente para detectar o espalhamento do surto por microcomunidades dentro da cidade, mas não o suficiente para que identidades individuais possam ser discernidas em dados públicos.

Enquanto todas essas formas de rastreio de doenças são aprimoramentos do modelo básico que Farr e Snow ajudaram a criar na metade do século 19, elas têm em comum uma característica importante: são baseadas em dados coletados de seres humanos que passam pelo sistema de saúde ou usam algum mecanismo em que eles próprios fornecem as informações. Para levar a linha do tempo ainda mais para a esquerda, talvez seja necessário usar novas fontes de dados, que não são ancoradas em casos individuais. 

No começo da década de 1990, um microbiologista holandês chamado Gertjan Medema conduzia experimentos com triatletas que competiam no delta do Reno. Medema e seus colegas estavam interessados no impacto da natação em rio aberto sobre a saúde, e por isso, como parte do experimento, coletaram água do rio e a analisaram, em busca de diversos patógenos: bactérias, patógenos fecais, vírus entéricos e outros micróbios perigosos. Naquela época, levava semanas para testar uma amostra procurando esses organismos. Enquanto Medema e sua equipe ainda estavam esperando os resultados, surgiu a notícia de um raro surto de pólio em Streefkerk, cidade que ficava a dez quilômetros rio abaixo do local dos testes. Medema analisou a água do rio que eles coletaram três semanas antes e descobriu que o vírus da pólio podia ser claramente detectado nas amostras. O rio mostrou indícios de um surto semanas antes que eles fossem obtidos pelas autoridades sanitárias. “Foi uma sorte — se é que ‘sorte’ é a palavra certa”, diz Medema agora. 

Em 1992, esses indícios eram inúteis para a saúde pública, pois levavam tempo demais para ser decifrados. Mas as ferramentas de hoje permitem que cientistas como Medema detectem um vírus, com base em sua sequência genética específica, em questão de horas. Como muitos patógenos perigosos são expelidos nas fezes humanas, amostras de esgoto são a forma mais direta de rastrear a atividade viral ou bacteriana em qualquer comunidade — com exceção de testar as pessoas diretamente. “Quando eu vi o SARS-CoV-2 atingir a China”, diz Medema, “comecei a procurar relatórios sobre a presença do vírus em amostras fecais.” Em pouco tempo, passaram a circular provas de que pessoas que tinham Covid-19 sofrem de diarreia. “Foi aí que eu disse: pode ser que esse vírus venha para o nosso país, então é melhor a gente começar a fiscalizar o esgoto. Não porque achamos que ele apresente um risco importante de transmissão, mas porque você pode usar o esgoto para monitorar a circulação do vírus na população.”

No dia 6 de fevereiro, Medema e seus colegas coletaram amostras de esgoto em seis lugares da Holanda, incluindo uma estação de tratamento que fica perto do Aeroporto Schiphol, em Amsterdam, trabalhando com a premissa de que o vírus poderia chegar em alguém que tinha feito uma viagem de avião. Os resultados foram negativos. Mas, um mês depois, quando o surto ainda estava começando na Holanda, eles voltaram para os mesmos locais para coletar amostras. Dessa vez, encontraram a presença do vírus em diversos desses locais. “Se compararmos os resultados das amostras de esgoto coletadas anteriormente e o número de casos registrados”, diz Medema, “parece provável que possamos detectar sinais do vírus se tivermos um infectado a cada 100 mil pessoas.” (Um estudo preliminar de uma estação de tratamento de esgoto em New Haven, no estado de Connecticut, feito na primavera deste ano, mostrou que a presença do vírus no esgoto atingiu seu ápice sete dias antes dos casos de Covid-19 registrados.) Na época de Farr, o esgoto era a principal causa das epidemias. Mas, no século 21, o esgoto pode nos fornecer dados importantes para conter o progresso do vírus. 

Na época de Farr, o esgoto era a principal causa das epidemias. No século 21, o esgoto pode nos fornecer dados importantes para conter o progresso do vírus

Nem todos os patógenos são expelidos no excremento humano, o que significa que a abordagem de Medema tem algumas limitações na defesa contra surtos futuros. Mas a monitoração do esgoto tem uma vantagem crucial sobre a vigilância sindrômica num vírus como o SARS-CoV-2, que tem uma concentração especialmente alta de vetores que não apresentam nenhum sintoma. “A dificuldade com esse tipo de vírus é que a contenção não funciona, porque tem muita transmissão silenciosa”, diz Medema. “Mas, com um vírus assim, podemos usar o monitoramento de esgoto, para detectá-lo e entender melhor a circulação dele. Existe uma projeção de que pode haver diversas ondas desse vírus. Talvez o monitoramento do esgoto seja uma forma de nos alertar com antecedência de que tem outra onda surgindo.”

A técnica mais radical para empurrar a linha do tempo da coleta de dados para a esquerda — e que também é a que pode fornecer a proteção mais significativa contra futuras epidemias — envolve retirar completamente os seres humanos da equação. Os dados que William Farr usou como base para desenhar a primeira curva de epidemia em 1840 se limitavam a padrões de vida e morte na população humana, o que é compreensível. A vigilância sindrômica e o monitoramento do esgoto nos permitem perceber os sinais mais no começo do ciclo, ao detectar sintomas ou presenças de patógenos em amostras fecais antes que as pessoas façam contato com o sistema de saúde. Mas, em muitas das doenças mais aterrorizantes que surgiram nas últimas décadas, os primeiros casos em humanos apareceram no meio de uma linha do tempo bem mais longa. “A Covid, a SARS, a MERS, a gripe suína, a gripe aviária, o ebola, o HIV, a Zika, todas foram, em algum momento, doenças de animais”, diz Larry Brilliant. “Em vez da vigilância sindrômica, dar dois passos para a esquerda é fazer a vigilância de doenças de animais. Você vai para onde tem de ir, para o reino das doenças zoonóticas, das quais temos cerca de cinquenta que saltaram de animais para humanos nas últimas três décadas.” 

A premissa de aplicar a estatística vital de Farr no reino das doenças de animais é simples: você pode acabar com uma doença zoonótica nova antes que ela passe do animal para os humanos. A vigilância animal pode impedir a potencial pandemia com a qual os especialistas historicamente se preocupam mais: um surto de gripe parecido com o da gripe aviária de 1918. “Se vinte galinhas suas morrem e você depende delas para viver”, diz Brilliant, “mas existe um telefone de emergência, que nem no Camboja, você pode ligar para o governo e dizer ‘morreram vinte galinhas minhas’ que eles vêm, trazem trinta galinhas vivas e desinfectam o seu galinheiro.

Esse é um sistema bidirecional fenomenal, que se livra do vírus para você, ajuda você a voltar para o mercado e aborta a epidemia. Conseguir monitorar morcegos, porcos, aves — isso é ir muito além da vigilância sindrômica. É isso que nós vamos ter de fazer na era das pandemias.” 

No início, os dados sobre a saúde pública eram registros em sua forma mais básica: quantas pessoas morreram em tal lugar, em tal dia. As descobertas que surgiram a partir da coleta dessas informações ajudaram a transformar as cidades de “túmulos da humanidade” em comunidades que hoje têm algumas das expectativas de vida mais altas do planeta. Mas, durante uma epidemia, da perspectiva da estatística vital, uma morte humana conta a história de uma infecção que aconteceu no passado. Cem galinhas mortas, por outro lado, podem contar a história de uma infecção futura — e talvez impedi-la de chegar a acontecer. (Tradução de Julia Romeu)

* O número de casos e o de países atingidos foram atualizados com dados de até meados de dezembro de 2020. 

Quem escreveu esse texto

Steven Johnson

É um escritor norte-americano.

Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.