As Cidades e As Coisas,

Galeria a céu aberto

Diretoras do CURA escrevem sobre a gestação e as transformações do festival de arte urbana realizado desde 2017 em Belo Horizonte

25ago2022 | Edição #61
  
A praça Raul Soares, em Belo Horizonte, onde foi realizado o festival cura em 2021 [Cadu Passos]

Do desejo de transformar visualmente o horizonte de Belo Horizonte nasceu o primeiro mirante de arte urbana do mundo. Localizado na região central da capital mineira, na rua Sapucaí, hoje conta com quase duas dezenas de empenas, pintadas por artistas do Brasil e do mundo.

O Circuito Urbano de Arte (CURA) é um festival concebido e gestado por mulheres e, nesse encontro de forças e vivências que colocou a cidade no mapa mundial dos festivais de arte pública, existe também a vontade de conceber a ocupação do espaço público por meio da arte e da cultura que pensa a cidade. Por isso, o CURA não se encerra em 15 mil metros de pinturas. Os territórios que ele cobre são muito maiores, em uma espécie de Zona Autônoma Temporária, com fruição democrática e gratuita. Ele causa estanheza no cotidiano, modificando relações entre cultura e sociedade; é um agente vivo que propõe transformar o olhar e, assim, reinventar a própria cidade. Desloca os centros — tanto os físicos quanto os centros de interesse. Sugere outros percursos, cria mapas da cidade, construindo um atlas que contempla diferentes modos de ver, caminhar e estar em Belo Horizonte.

O próprio CURA não é o mesmo desde o início, assim como suas idealizadoras, que ao longo de seis edições viveram gestações e se tornaram mães, em uma jornada dupla — pessoal e profissional — de transformação. Esse exercício de propor, aprender e amadurecer se reflete na escolha por uma curadoria descentrada, que se aprofunda em um Brasil que não é somente urbano e sudestino. O CURA também dinamiza saberes não urbanos e não hegemônicos, trazendo artistas com modos, tecnologias e formas de fazer e pensar diversos, inserindo na cidade vozes que apontam outros caminhos. Alargar os espaços para caber mais gente.

Criamos a residência artística para possibilitar uma experiência imersiva para mulheres iniciantes na cena, com convocatória nacional e pública. Realizamos bazares e feiras, tensionando o próprio mercado de arte, contribuindo para que façam parte dele artistas que nunca expuseram e venderam suas obras. A cada edição, procuramos transgredir a cidade letrada; jogar luz sobre escritas urbanas e seus artistas; pôr em debate questões como a livre manifestação de culturas anti-hegemônicas, com aulões, oficinas, sessões de filme, rodas de conversa, pedaladas pelas obras, visitas guiadas, festas e shows. É hoje um dos festivais de maior impacto do Brasil porque é um agente vivo. Depois que terminam os dias de evento, ele continua e se amplia, integrado à cidade.

Nova morada

No ano passado, o CURA encerrou —mesmo que temporariamente — suas atividades no Mirante Sapucaí e foi para um novo território. Sua nova morada é a Raul Soares, praça modernista inaugurada em 1936, situada no encontro da Amazonas com outras três grandes avenidas.

Depois de chegarmos na praça de corpo presente — deitar na grama, sentir o ambiente —, iniciamos uma profunda pesquisa sobre sua história, desde a concepção do projeto até os movimentos sociais presentes ali. Descobrimos que os grafismos feitos com pedras portuguesas eram do povo Marajoara. A praça estava no deságue da avenida Amazonas: a rua Marajó. E o que estaria na outra ponta desse rio? Sua nascente, no Peru.

Concebemos um festival-ritual para irradiar, a partir da praça, um novo ambiente de imersão em arte pública. Um amplo e irrestrito convite para ver o que sempre esteve entre nós: a cultura indígena viva em grafismos e em espírito presente, a praça cheia de história e vivências, com sua fonte central com contornos da Chakana peruana, de conexões transamazônicas, encontro de povos e culturas latino-americanas. A praça ganhava, na boca do povo, o apelido de Raulzona.

Ouvimos, de diferentes moradores e moradoras de Belo Horizonte, que a praça havia sido ressignificada. Que foram anos passando por ela sem enxergar tamanha beleza, que os grafismos passavam despercebidos. Muita coisa pode se transformar quando se muda o olhar sobre o espaço urbano.

Pedimos a licença para entrar nesse novo território, a Raulzona. Encontro de toda gente em pleno centro de Belo Horizonte, onde a vida pulsa no asfalto, nos edifícios, comércios, bares, inferninhos, nas igrejas e até no que não nos abrimos para enxergar. Uma praça-circular, encruzilhada de caminhos, afetos, culturas e experiências compartilhadas com quebra de expectativa, mudança do ritmo da vida.

A mesma praça, que guarda a cultura dos povos originários do Amazonas, é território de um carnaval que não nasceu para ser evento, abrigo para moradores em situação de rua (que, com a pandemia, se tornou lar de um número ainda maior de pessoas), local de encontro de trabalhadores e trabalhadoras em greve, de movimentos sociais, de mulheres organizadas no 8 de Março, de manifestações e protestos e de reivindicar o direito à cidade. Espaço de dissenso e festa, de descobrir laços de pertencimento, de imaginar outra cidade.

A Raulzona é também historicamente território LGBTQIA+, lugar de resistência de corpos dissidentes. Desde os anos 50, a presença noturna de assim chamados “vadios”, travestis, “juventude transviada” e “invertidos” já era alvo constante de reclamações, seguidas de intimidações, batidas policiais e prisões. A praça se esvaziaria e voltaria a se encher em ciclos que ocorrem até hoje. No seu entorno, bares, karaokês e casas noturnas seguem abrigando eventos promovidos e frequentados pela comunidade LGBTQIA+.

Nela também está localizado o Edifício JK, Conjunto Governador Kubitschek, o maior monumento modernista de Minas Gerais, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e inaugurado em 1952. No edifício deveriam funcionar, de acordo com o projeto original, um museu de arte moderna, repartições públicas e residências de tamanhos variáveis, além de comércio e serviços. Uma grande área de lazer facilitaria o trânsito dos moradores dentro das dependências do próprio prédio. Constituído por dois blocos, o complexo conta com um edifício de 23 andares e outro de 36. Cerca de 5 mil moradores habitam as quase 1100 unidades existentes nos dois prédios.

Concebemos um festivalritual para irradiar um novo ambiente de imersão em arte pública

No CURA de 2021, junto com Naine de Jesus e Flaviana Lasan, nós desenvolvemos um trabalho de curadoria que percorreu este caminho transamazônico: em um só espaço-tempo, todos ali viveram a experiência de rio — nascente, percurso, deságue — de forma artística e ritual. O Amazonas brotaria com seus artistas no centro da cidade de Belo Horizonte.

Território expandido

Um novo mirante foi inaugurado. Desde então, a Raulzona tornou-se nossa nova galeria a céu aberto e, como algo vivo que é, se multiplica, transborda. Testemunhar uma entidade das águas sendo bordada no asfalto pode até ter uma duração específica, mas a experiência segue reverberando na cidade, como se o efeito de cobri-la de festa e de cor permitisse descobrir uma mesma cidade, cheia de vida, plena de possibilidades. Raulzona potencializada é território expandido, praça da qual podemos nos sentir um pouco mais próximos, tanto para experimentar a beleza, mesmo de longe, quanto para viver seu dia a dia.

Os desafios são inúmeros. Os impasses vividos pela cultura no país e o enfraquecimento e boicote à cultura em âmbito federal trouxeram dificuldades de várias ordens, desidratando a cadeia produtiva da cultura. Seguimos, com ainda mais orgulho pela resistência. Este é o ano da cura, do recomeço, dos reencontros, da retomada da cultura. E podemos dizer com convicção: é só o começo.

Quem escreveu esse texto

Carol Macedo

Jornalista, integra o coletivocura CURA (Circuito Urbano de Arte).

Janaína Macruz

Engenheira de produção, é fundadora do CURA (Circuito Urbano de Arte).

Priscila Amoni

É muralista e diretora criativa do CURA (Circuito Urbano de Arte).

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.