Arte e fotografia,

Daido Moriyama revisita sua infância

O fotógrafo japonês ganha retrospectiva de suas seis décadas de carreira, marcada pelo retrato monocromático da cena urbana

06abr2022 | Edição #56

Daido Moriyama passou a infância em diversas cidades. Aos 21, mudou-se da sua Ikeda natal, em Osaka, para Tóquio e, com uma pequena câmera em mãos, registrou o que via nas ruas da capital. As cenas urbanas capturadas em preto e branco, granuladas e contrastantes, marcaram a produção de um dos grandes fotógrafos japoneses da atualidade, que ganha sua primeira retrospectiva na América Latina nesta semana.

Talvez devido às suas andanças, as cidades e a memória são objetos centrais da obra de Moriyama. O artista retrata a Tóquio dos anos 60, quando trabalhou com o cinegrafista experimental Eikoh Hosoe. Nas décadas seguintes, Moriyama desenvolveu uma vasta produção com um olhar observador, contestador e impactante. Ao longo de mais de sessenta anos de carreira, questionou o que é a fotografia, refletiu sobre o caráter democrático das imagens e expandiu a linguagem fotográfica.  

Suas imagens são marcadas pelo contraste da fotografia em preto e branco e da metrópole moderna efervescente em um país com uma forte cultura tradicional, e hoje fazem parte de coleções de grandes instituições, como o Museu de Arte Moderna de Nova York; o Centre Pompidou, em Paris; e o Tokyo Metropolitan Museum of Photography. 


Yokohama, Kanagawa, 1982. Da série Memórias de um cão 3. [Daido Moriyama/Daido Moriyama Photo Foundation]
 

Nesta semana, o Instituto Moreira Salles (IMS) paulista abre a exposição que reúne mais de 250 fotografias junto com publicações e ensaios do artista. Junto com a mostra, resultado de três anos de pesquisa do curador Thyago Nogueira, a instituição está lançando o catálogo homônimo, Daido Moriyama: uma retrospectiva, que traz um ensaio do artista originalmente publicado na revista japonesa Asahi Camera, em 1982, e inédito no Brasil. O ensaio “Caminho solitário” — traduzido do japonês por Pablo Yuba e reproduzido em parte abaixo — faz parte da série Memórias de um cão, em que o artista revisita locais de sua infância e reflete sobre memória e nostalgia. Leia trecho a seguir.

Caminho solitário

O nome do meu irmão mais velho era Kazumichi. Ele partiu com apenas um ano de idade. Obviamente, não tenho lembranças dele. Nós éramos gêmeos. Se considerarmos meu irmão uma cópia da família Moriyama, eu sou uma recópia. No ideograma “ 一” (kazu, “um”) do nome dele, foi sobreposto o ideograma de “pessoa” (人) para compor meu nome (大道), e eu acabei sobrevivendo. 

Pouco antes do meio-dia do dia 10 de outubro de 1938, nós dois nascemos numa casa alugada no atual distrito de Uho, cidade de Ikeda, prefeitura de Osaka. De acordo com a memória de minha mãe, foi um dia calmo e ensolarado de outono. 
Soube que nesse mesmo mês o exército japonês ocupou Cantão, que a Guerra Sino-Japonesa virou um impasse, e que eram tempos sombrios, quando as ruas eram tomadas pelas canções militares. 

Dizem que a região de Uho nessa época era uma área residencial gramada e com muitas árvores, onde se ouvia agradavelmente o som dos trens da empresa Hankyu. 

Nenhum fragmento de memória dessa época permanece dentro de mim, mas não sei por que consigo enxergar algo ali. É de uma natureza diferente de um déjà-vu, uma vaga imagem que se forma dos raios de sol batendo numa paisagem. Como se surgisse no ar um tipo impreciso de miragem. 

No inverno desse mesmo ano, nos mudamos para Hiroshima em razão do trabalho de meu pai. Eu era extremamente fraco e, para cuidar da saúde, tive que ir para a terra natal de meu pai em Iwami, na província de Shimane, para ficar com meus avós na vila de Takuno, de frente para o mar do Japão. Minhas primeiras lembranças são dessa pequena vila, portanto me pergunto onde aquela tal miragem se forma e chega até mim. 


Tóquio, 1982. Da série Memórias de um cão 2. [Daido Moriyama/Daido Moriyama Photo Foundation]
 

O atual município de Ikeda fica a noroeste da planície de Osaka. O rio Inagawa corre pela periferia da cidade e demarca seu limite com a cidade vizinha Kawanishi, Hyogo. A história da cidade remete a tempos antigos, virou centro produtor de saquê antes mesmo de Nada. Ikeda era chamado de ponto-chave da região de Hokusetsu. Para mim, entretanto, não é uma questão de onde ou quem, trata-se apenas de uma cidade pela qual sinto um traço de nostalgia. 

Nesta edição, em que inicio uma nova série, quis de todo jeito começar pela cidade de Ikeda. Só o fato de ter nascido lá não faz da cidade minha casa, sequer tenho lembranças do local. Apenas um vestígio, uma visão. Porém, o nome da cidade de Uho permanece em mim até hoje. Num lugar privilegiado, numa rua sem saída das minhas memórias, em traços não muito definidos, aparece esse tal pedaço vagamente iluminado pela luz do sol. Agarrei-me a essa imagem, e assim fui fotografar Ikeda.

Não é uma busca pelas horas perdidas, não é isso. Pela cidade de Ikeda não sinto sequer um fragmento de saudade. É dispensável sentir algo por uma ilusão, e também não consigo sobrepor o passado com o presente nem o presente com o passado, afinal eu não enxergo esse tal passado. O filme fotográfico não revela uma ilusão. Por isso embarquei no trem da Hankyu, visitei a cidade de Uho e passei um tempo fotografando. Seja qual for o resultado da revelação, para mim estava tudo certo.

Galeria | Daido Moriyama: uma retrospectiva

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Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.