Literatura infantojuvenil,

As crianças de María José Ferrada

Do exílio forçado no México ao desaparecimento durante a ditadura do Chile, a autora chilena resgata histórias dolorosas vividas por crianças

15mar2021 • 17jan2024 | Edição #69

A autora chilena María José Ferrada não escolhe temas fáceis de serem abordados para o público infantil. Do exílio forçado de crianças espanholas na cidade de Morelia, no México, em meio à Guerra Civil Espanhola (1936-39), em Mexique, passando pelo envelhecimento da protagonista de Meu bairro (os dois ilustrados por Ana Penyas), e chegando ao desaparecimento de crianças durante a ditadura no Chile, tema dos poemas de Crianças (que traz ilustrações de María Helena Valdez), Ferrada consegue trazer leveza a temas áridos. Esses três títulos chegam ao mercado brasileira pela Pallas Míni, mostrando a força do trabalho da autora chilena. No Brasil, a editora ÔZé já havia publicado Escondido, feito em parceria com Rodrigo Marín Matamoros, outro livro seu voltado para crianças, além do romance Kramp (Moinhos, 2020), voltado para o público adulto. Nessa entrevista concedida à Quatro Cinco Um, a escritora fala mais sobre o resgate da memória dessas crianças e como é importante se confrontar com a dor do outro.

Em Mexique Crianças, você aborda temas difíceis e complexos, como imigração, guerra, morte e ditadura no Chile. Como tratar esse tipo de tema para um público infantil? Quais os desafios?
Acho que o desafio tem a ver com abordar as questões de forma que elas estejam ao alcance das crianças, sem perder sua complexidade, sem amenizá-las. Porque são livros que abordam partes obscuras da nossa história e do ser humano que as crianças também percebem — muitas vezes no papel de vítimas. Então o objetivo desses livros é que paremos nessas histórias, que usemos o livro como uma ferramenta de reflexão, que discutamos por que essas coisas acontecem para rever o que podemos fazer, a partir do lugar em que estamos, para que essas coisas não aconteçam novamente. Não podemos esquecer que por trás dos exilados, por trás da violência política está sempre a intolerância e a incapacidade de acolher quem pensa ou é diferente. Portanto, esses livros buscam que desde pequenos reflitamos sobre qual é o nosso papel na construção de sociedades violentas ou pacíficas.

Ilustração de Ana Penyas

Esses livros têm um caráter documental e de resgate da memória. Como é feita a pesquisa e como essas histórias são adaptadas para um público infantil?
São livros que têm caráter documental, mas são feitos com informações que estão ao alcance de todos. O problema é que, talvez por serem coisas dolorosas, passamos por elas muito rapidamente, olhando para o outro lado. Temos muito medo de ver a dor dos outros, mas o problema é que, se não a enfrentarmos, é possível que essa dor volte com mais força. O objetivo desses livros é que nos detenhamos nesses fatos, que os observemos, mesmo quando é doloroso, pelo tempo que for necessário e vejamos o aprendizado que podemos tirar de tudo isso. O que posso fazer para que isso não aconteça mais. Pode soar ingênuo, ou ambicioso demais, mas acho que o pior que podemos fazer é dizer: o mundo sempre foi assim, não posso fazer nada. Acho que podemos fazer coisas, se sou uma criança na sala de aula, posso escolher não punir quem é diferente. Sim, posso me colocar no lugar do meu companheiro imigrante em vez de ignorá-lo. São coisas pequenas, mas podem significar muito para quem as recebe.

Ilustração de Ana Penyas

Em Mexique, por exemplo, você chegou a falar com alguns dos descendentes das crianças de Morelia?
Não. Nesse caso, para construir a história do exílio, conversei com pessoas, amigos, que viveram no exílio quando eram crianças e tiveram que ir embora do Chile para outros países. Eu estava interessada na experiência subjetiva. Como uma criança observa aquela viagem. Fui informada sobre a experiência específica do navio através de documentários e entrevistas que fizeram com os filhos de Morelia e que estão à disposição para quem quiser conhecer essa história.


Ilustração de María Elena Valdez

Em Crianças, você pesquisou sobre cada uma das crianças desaparecidas durante a ditadura do Chile?
Quando a democracia voltou, o Estado chileno preparou dois relatórios públicos (a Comissão Rettig e a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação), que qualquer pessoa pode acessar. São vários volumes que descrevem o momento e a situação em que as vítimas desapareceram ou foram executadas. Lá, naquele mar de nomes, estavam as histórias das crianças. O que me chamou a atenção foi que não existia uma lista que os agrupasse como crianças. Então o que fiz foi pesquisar quantas crianças havia nessas listas. Li os relatórios e depois, para escrever o livro, tentei esquecer um pouco aquele horror todo sobre o qual havia lido. E a partir daí, tentei no livro fazer o contrário: relembrá-los da vida, que é o lugar onde deveriam ter continuado. Brincar, sonhar, aprender e fazer as coisas que uma criança deve fazer e não aparecer em um relato de desaparecimento e morte.

O livro Meu bairro fala de envelhecer bem na forma de dona Marta. De onde surgiu a ideia para o livro?
Esse livro surgiu do prazer de observar mulheres idosas que, enquanto podem se locomover, não importa se em um ritmo mais devagar, vão ao cabeleireiro, visitam as amigas e tomam um café, seguindo uma rotina que torna a vida mais suportável. No momento em que vivemos, no qual essas pequenas rotinas foram interrompidas pela pandemia, percebemos o quanto precisamos delas.

Ilustração de Ana Penyas

A questão da autoestima na terceira idade também aparece em Meu bairro, com dona Marta sempre falando para si mesma “oi, bonita”, além de possuir uma rede de apoio em seu bairro. Os desafios que as sociedades devem encarar diante do envelhecimento das suas populações estiveram na sua cabeça na hora de escrever o livro?
Sim, tinha a ideia de que damos pouco espaço aos idosos para que eles contribuam para suas comunidades. É como se a partir de uma certa idade você não tivesse mais nada a oferecer para a sociedade, e me parece que se você teve uma vida longa, você pode ter uma visão interessante e valiosa do presente. Também gosto de que a personagem se veja como uma mulher bonita. Em relação à rede de apoio dos vizinhos, gosto da ideia de que assim como o bairro é importante para nós, nós também somos importantes para o bairro. E que sem as “donas Martas” com quem nos deparamos todos os dias faltaria alguma coisa. Acredito muito na beleza dessas pequenas rotinas e também na importância desses personagens secundários em nossa vida. Esses seres que encontramos durante anos que parecem estar aí para nos dizer: “calma, o mundo continua a girar na mesma velocidade de sempre”.

 

Ilustração de María Elena Valdez

Como é seu trabalho com diferentes ilustradores?
É um trabalho que delego totalmente aos editores. E nunca me arrependi de fazer isso. Só dou minha opinião quando o trabalho amadureceu e o ilustrador teve tempo e espaço para desenvolver sua proposta, que é sempre melhor do que o que eu poderia imaginar. Acredito que cada um lida com a sua linguagem e o editor é aquele que sabe canalizar a conversa entre essas duas línguas. Além do design e da impressão, que também são fundamentais quando fazemos esse tipo de livro.

O seu primeiro romance voltado para o público adulto, Kramp, tem como protagonista uma garota que viaja com o pai pelo Chile nos anos 1980. De onde surgiu a vontade de escrever esse romance para adultos?
A princípio, não pensei como um romance para o público adulto, mas, enquanto escrevia, percebi que seria difícil para ele chegar às crianças porque os vendedores ambulantes —  que são os protagonistas do romance —  eram muito desbocados e um tanto politicamente incorretos. Além disso, a pequena protagonista fuma desde os sete anos, e isso, no contexto da escola, é difícil porque os adultos entendem que você está dando ideias ruins aos leitores (como se os leitores fossem tão fáceis de manipular… acho que não). Acontece também que o romance fala sobre a solidão, como tudo que se conhece está se transformando e como os afetos que parecem tão seguros também podem se romper e, nesse processo, quebrar você. Portanto, esse não era um assunto que eu queria falar com as crianças. Acredito que sejam coisas que cada um deve descobrir por si mesmo e no seu tempo.

Ilustração de Ana Penyas

Foi muito diferente de escrever para crianças? 
Em vez de sentir que havia um desafio diferente para o leitor, o formato do romance foi um desafio para mim, pois nunca havia trabalhado com isso. A verdade é que para mim foi bastante difícil sustentar a história por tantas páginas. Costumo escrever coisas curtas e estou acostumada a contar minhas histórias em poucas palavras. Então foi um desafio, mas um belo desafio, porque gosto de investigar tudo que as palavras podem dar de si.

Que livro você gostaria de ter lido quando criança?
Os que li me deixaram muito feliz, especialmente um chamado Un cuento para cada día,  que minha mãe leu para mim todas as noites por alguns anos. Mas acho que teria adorado ter lido os livros de Kitty Crowther, por exemplo.

Como incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Acredito que sem forçar e disponibilizando várias leituras às crianças, para que, aos poucos, encontrem aqueles livros que serão inesquecíveis. Acho importante dar espaço para que elas, em meio à grande variedade de livros infantis que existem hoje, decidam algo tão importante e pessoal como o gosto literário.

Este texto foi feito com apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.