A escritora estadunidense Sigrid Nunez (Adam Lerner/Windham Campbell/Reprodução)

Literatura, Trechos,

O animal incomum de Leonard e Virginia Woolf 

A partir de diários e cartas dos Woolf, novo romance de Sigrid Nunez recria a vida da sagui de estimação do casal, que os ajudou a escapar de nazistas

27jun2025

Em Mitz: a sagui que não teve medo de Virginia Woolf, a escritora estadunidense Sigrid Nunez constrói a biografia de Mitz, a sagui que Leonard e Virginia Woolf adotaram em julho de 1934. Vencedora do National Book Award por O amigo, a autora pesquisou diários, cartas e memórias da escritora britânica e não só contou a história do animal, como também trouxe um retrato da intimidade do casal e do conturbado contexto histórico que viviam. 

Mitz, que foi ganhada de presente do casal Rothschild, tinha uma relação especial com Leonard e até aparentava sentir ciúmes de Virginia. A sagui viveu com o casal no período entreguerras, em meio à ascensão do fascismo, e chegou a ajudar Leonard — que era judeu — em uma situação com os nazistas às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘Mitz: a sagui que não teve medo de Virginia Woolf’

Estavam a caminho de Colônia quando viram o primeiro cartaz: JUDEUS, DEIXEM A ALEMANHA.

“Onde está todo mundo?”, perguntou-se Virginia em voz alta.

Leonard se perguntava o mesmo. Haviam passado por Colônia e seguiam em direção a Bonn. A estrada estava suspeitamente vazia. E, ao se aproximarem de Bonn, viram algo ainda mais suspeito: soldados armados alinhados em ambos os lados da estrada. O que isso poderia significar?

Leonard tocou o bolso e encontrou a carta do príncipe Bismarck. Fez isso furtivamente; não queria que Virginia soubesse quão ansioso estava. Mitz sabia: ela podia dizer pela rigidez no pescoço de Leonard. O que estava acontecendo? Ah, ali estava um policial que poderia explicar. Mas o policial não teve tempo para explicar, apenas para dar ordens, e gritou: Parem! Retornem! A estrada estava fechada! “Der Herr Präsident kommt!” [O senhor presidente está chegando!]

A agitação do policial enervou Leonard, que virou o carro imediatamente e procurou um lugar para estacionar.

Bem, já que estavam em Bonn, podiam muito bem sair e dar uma olhada.

A primeira coisa que viram foi uma faixa presa entre dois postes de luz: JUDEUS, DEIXEM BONN.

Foram visitar a casa onde Beethoven nasceu. Amado Beethoven — que também era alemão, lembraram a si mesmos. Depois, foram a um café. Estavam cansados, sedentos e cabisbaixos. Leonard sofria de tremores crônicos nas mãos e tremia tão violentamente que mal conseguia beber o chá. Então: Herr Präsident estava chegando. “Bem, quem poderia ser além de você-sabe-quem?”, disse Virginia, baixando a voz para um sussurro (o café estava lotado).

Leonard, que desistiu de tentar esconder a ansiedade, disse que achava que, quanto mais cedo eles saíssem de Bonn, melhor. “Temos que encontrar uma estrada diferente daquela pela qual chegamos”, disse ele, pegando o mapa.

Estavam na margem direita do Reno e precisavam chegar à margem esquerda. Lá, pegariam a estrada para Mainz.

Saíram do café e, com a ajuda de um homem na rua, encontraram o caminho por uma ponte. Mas, quando chegaram à margem oposta, foram confrontados por uma grande turba. Havia homens de uniforme — policiais e soldados com rifles, como os que tinham visto antes na Autobahn — e fileiras incontáveis de crianças uniformizadas. Uma banda tocava, e algumas pessoas cantavam a plenos pulmões; outras cantarolavam. Um mar vermelho de bandeiras ondulava. Suásticas, suásticas por toda parte, e faixas tremulando — OS JUDEUS SÃO NOSSOS INIMIGOS — a apenas alguns metros de distância.

Leonard e Virginia sentaram-se aturdidos em seu carro. A capota estava arriada; não poderiam ter se sentido mais expostos.

“Ah”, disse Virginia, a voz soando muito distante. “O que vamos fazer agora?”

“Conhecer Herr Präsident, ao que parece”, murmurou Leonard. Ele tinha certeza de que era isso que as pessoas estavam esperando. Faça o que for, mas fique longe das manifestações nazistas, ele fora avisado. E ali estavam eles, presos no meio de uma. Seu carro era o único na estrada. As pessoas olhavam para eles. Mitz sentiu o batimento acelerado no pescoço de Leonard e sua repetida deglutição.

Um homem de uniforme preto, com o rosto muito vermelho, se aproximou. Levantou as mãos, apertou os punhos, ergueu um joelho e depois o outro e bateu os pés. Ele próprio era uma suástica, sob todos os ângulos: torcido, preto e vermelho. Apoiou-se no carro. Leonard sentiu a carta no bolso.

Mitz, animada com o barulho, as bandeiras e então com esse divertido companheiro, saltou no volante e gritou. O homem parou. Surpresa, depois perplexidade e então ternura apareceram em seu rosto. “Ah-oh-ah!”, exclamou. Bateu palmas como uma criança. “Das lieb kleine Ding!” [Que coisinha mais adorável!]

Era como se os Woolf tivessem desaparecido. O soldado da tropa de assalto só tinha olhos para Mitz. Ele se inclinou para o carro, e Leonard inalou uma mistura de cerveja, cebola, couro, pomada e suor. O homem agitou um dedo para Mitz, e Virginia fechou os olhos e rezou para que Mitz não o mordesse. Ainda assim, ela o mordeu, mas isso só pareceu aumentar o deleite do homem. Ele murmurava e balbuciava, oferecendo dedos de salsicha alemã para Mitz, um por um. E qual era o nome da doce criaturinha? Após ouvir o nome, riu e o repetiu várias vezes, dando um tapa na coxa. Ele adorou — adorou! Por fim afastou-se do carro, juntou os calcanhares e ergueu o braço. “Heil Hitler!”

Os Woolf entenderam que estavam sendo autorizados a dirigir. Leonard avançou com o carro enquanto o homem gritava para a multidão abrir passagem, abrir passagem para Mitz! Muitas pessoas tinham visto Mitz apontavam e gritavam para ela. Atrás deles, outras pessoas levantavam o pescoço para uma visão melhor, e os ohs e ahs se tornaram mais altos e estridentes; e se ouvia o nome Mitz sendo dito aqui e ali. Risos e alegria e braços estendidos: “Heil Hitler!” “Heil Hitler!” Qualquer um teria pensado que fora para Mitz que os nazistas haviam se reunindo.