
Flip, Poesia,
Notas sobre o pai compositor
A poesia de Leminski permaneceu, virou frase de camiseta, post em rede social — e muita gente não sabe que algumas músicas que conhece são dele
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Paulo Leminski era um artista que conciliava opostos. Um samurai malandro. Cheio de caprichos e relaxos. Mergulhava com rigor na linguagem, mas ria dela ao mesmo tempo. Escrevia como quem respira. Misturava vida e obra com naturalidade. Criação no meio da vida. Vida no meio da criação. Era também meu pai.
Leminski nem era o sobrenome original da família. Era Lemiszka. Esse tipo de imprecisão diz muito sobre as projeções criadas em torno dele: um nome, uma origem, uma moldura. A obra, no entanto, escapa. Ou melhor, recusou moldes. Muito concreto para a poesia marginal. Muito transgressivo para a academia. Muito pop para os eruditos. Muito cult para as massas.
Convivi intensamente com meu pai. Quando minha mãe trabalhava fora, ele ficava comigo. Escrevia e vivia uma paternidade boêmia, às vezes caótica. Ele me incluía em seus processos criativos. Comentava livros, inventava piadas, cantava marchinhas carnavalescas. A máquina de escrever funcionava como alarme. O tec-tec anunciava que uma ideia surgia, fosse um verso inspirado ou um trocadilho duvidoso. Não havia barreira entre a vida e a escrita.
Era um pai atípico. Tinha suas confusões nas tarefas domésticas, mas compensava com humor, generosidade e invenção. Ensinava judô, tocava violão, lia gibis de terror, incentivava a imaginação. Quando escrevia, pedia silêncio absoluto. Fora isso, tudo era compartilhado. Inclusive a criação.
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Quando me perguntam sobre a influência dele na minha poesia, costumo dizer que nossa troca foi mais musical do que literária. A música era o centro social da nossa vida. Os amigos, as viagens, os encontros giravam em torno dela. Sou influenciada por ele como leitora. Mas na música participei do processo. Vi a bagunça, o bastidor, o improviso. Desde pequena quis estar entre rimas e acordes. Talvez por isso minha formação acadêmica tenha sido toda na música.
Leminski era vaidoso com a obra musical e foi múltiplo — isso fez com que tantos artistas se vissem nele
Com o tempo, percebi que me interessava justamente esse espaço entre palavra e som. Uma zona híbrida. Hoje não separo mais as linguagens. Música e literatura andam juntas. Contaminam-se. Sobrepõem-se. Como a própria vida.
A música depende de contexto. Suporte, mídia, moda. A poesia não. A poesia de Leminski permaneceu. Circulou na internet. Virou frase de camiseta. Post em rede social. Foi compartilhada por muita gente que talvez nem saiba quem é o autor. A internet nem sempre dá os créditos. E muita gente não sabe que algumas músicas que conhece são dele.
A indústria cultural era um campo minado. A poesia marginal usava o mimeógrafo. Ele também escrevia para outdoors, muros, discos. Recusava rótulos. Estava nos punks, nos roqueiros, na vanguarda paulista. Um artista multimídia antes de a palavra existir.
Gravava fitas cassetes para amigos, parceiros ou apenas por impulso criativo. Muitas se perderam num assalto em São Paulo. Algumas sobrevivem na memória ou no acervo da família, hoje digitalizado. Nem todos foram generosos com essa parte da história. Muitos foram.
Verdura
Em 2014, lancei o disco Leminskanções, com as composições dele. Quis trazer esse repertório sonoro à tona. Essa memória aparece nos arranjos. O som remete aos anos 80, mas permanece atual. Como ele. Um nerd-punk que citava Mallarmé e ia a shows de jaqueta de couro. Um dos primeiros títulos que pensei foi “Verdura não é do Caetano”, uma brincadeira com o fato de que essa e tantas outras canções são letra e música dele.
Busquei esses contrastes: erudição e coloquialismo, lirismo e ironia. Ele fazia canções lindas, doces, mas nunca sem uma pontinha de sarcasmo. Não gostava de vozes muito técnicas — muito menos exibicionismo, vibratos, melismas ou firulas. Queria a voz de quem entende o que canta. Se não gostava de uma versão, dizia na hora, sem rodeios. Era vaidoso com sua obra musical. Direto. Inteiro. Essa minha pesquisa gerou um songbook que finalmente inseriu de vez o termo “compositor” em seus resumos biográficos.
Acabo como começo
canções de fracasso
não fazem mais sucesso.
Leminski foi múltiplo — e isso fez com que tantos artistas se vissem nele. A originalidade estava na vida e na obra. Ser filha de Leminski é muito mais do que gerir isso. Foi ser cúmplice de uma vida inteira cheia de contradições, afetos, intensidade. Ele era culto, mas receptivo. Generoso, mas exigente. Muitos o veem como transgressor. Para nós, ele era o ninho: pedindo cafuné, revelando suas vulnerabilidades, buscando carinho.
Ele sabia, de algum modo, que quem daria continuidade à sua obra seríamos nós. E se em breve lanço mais um disco com inéditas, é porque ser filha dele sempre foi mais do que continuar um legado: foi viver, com ele, cada nota e cada palavra — e ser fiel ao que ele mesmo faria, até o fim. Afinal, ser bem do jeito que ele era foi muito além.
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “Notas sobre o pai compositor”
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