
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A FEIRA DO LIVRO 2025, Poesia,
Terra montanha
Com fotos tiradas nos últimos quinze anos e textos de poetas armênias, Cassiana Der Haroutiounian faz viagem lírica e visual pelo território de seus ancestrais
09jun2025“Memória inventada de uma terra montanha”, diz um verso do poema de Cassiana Der Haroutiounian que abre Uma ilha chamada Armênia, ensaio visual e poético da artista paulistana, lançado pela Tabla. Haroutiounian não nasceu na Armênia, mas se sente parte dela.
Como lidar com a sensação de pertencimento? O livro apresenta uma narrativa fotográfica sem legendas, entremeada com poemas de sete poetas armênias, e leva, como num documentário, o espectador-leitor a criar sua própria versão para decifrar o enigma proposto pelo título. Afinal, a Armênia é uma ilha?


A primeira imagem é o cume nevado do monte Ararat, visto à distância. A montanha não está ali à toa. Com seus mais de 5 mil metros, ele é símbolo indissociável da nação armênia, que já foi conhecida como o Povo de Ararat. As fronteiras mudam, mas os símbolos resistem: o Ararat pode ser visto a partir da capital do país, Yerevan, mas está dentro do território turco. A câmera segue por montanhas e vales, iniciando, como num filme, um plano-sequência que atravessará o livro, numa viagem pelo país. No início, quase não há vestígio humano, apenas terra e rocha. Na paisagem, escuta-se o eco da luta de outros povos, para os quais não há identidade sem território.
A bela edição traz fotografias que Haroutiounian fez ao longo de quinze anos de viagens ao país onde nasceram seus avós. Os poemas são apresentados em armênio e português, numa rara aparição desse idioma em edição brasileira. Criado há 1.600 anos, o alfabeto é motivo de orgulho no país. Para o olhar leigo, suas letras remetem a uma sucessão de colinas, reforçando a ideia de que a língua é, também ela, paisagem e território.
Há na Armênia um parque que celebra as 39 letras do alfabeto, bem perto do lugar onde estão os restos mortais de seu criador, o monge Mesrob, citado no poema de Silva Kaputikyan, “Mandamento para meu filho”: “ainda que se esqueça da sua mãe/ jamais esqueça da língua materna”.
Diáspora
A história recente da Armênia foi marcada por eventos políticos importantes, como a série de protestos que culminaram na revolução de 2018, e a guerra contra o Azerbaijão, em 2020. Haroutiounian abordou a Revolução de Veludo, como ficou conhecida, no documentário Cantos de um livro sagrado, premiado como melhor curta-metragem no Festival É Tudo Verdade em 2022.
Veios vermelhos nas montanhas nevadas são sangue e uma marca de tiro na parede se transforma
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A disputa pelo território de Nagorno-Karabakh, enclave que operava de forma autônoma dentro do território do Azerbaijão, foi vencida pelo país vizinho, e, além de deixar milhares de mortos, forçou o deslocamento da maioria da população de ascendência armênia. O livro passa, aparentemente, ao largo desses episódios, mas suas marcas estão presentes. Algumas imagens foram feitas em Nagorno-Karabakh, terras que agora fazem parte do Azerbaijão, mas que resistem na Armênia recriada pela fotógrafa — o território, inclusive, é chamado pelos armênios por outro nome: Artsakh.
As fissuras são visíveis e é o olhar da fotógrafa que as revela. Em uma cerca, ou cancela, que, num país que viu fronteiras mudarem muitas vezes, aqui parece separar nada de lugar algum — lembrando que nenhuma fronteira pode afastar a sensação de pertencimento. Fissuras em um terreno que não voltará a ser pisado. Em um papel de parede que descola, e revela uma fenda. Nas paredes oxidadas de casas-abrigo nas montanhas. Numa cadeira há muito sem sentir o calor de alguém. No corpo da avó. Haroutiounian cria suas próprias cicatrizes, seu passado está logo ali, sob a pele. “A sombra do sonho me persegue”, diz o poema de Tamar Marie Boyadjian.
Ao invés de uma porção de terra circundada pelo mar, vemos um lago circundado por montanhas. Algo está fora do lugar. “Os anciãos que ouviam falar do mar morreram há muito tempo”, diz o verso de Tatev Chakhian, em “Pátria sem mar”.
O país, cuja origem remonta a milênios, conseguiu sua independência da União Soviética em 1991 e está circundado por Irã, Turquia, Geórgia e Azerbaijão, num histórico de conflitos. O território é hoje uma fração do que já foi e está localizado no Cáucaso, porção de terra entre os mares Cáspio e Negro, lugar de fronteira entre o islã e o cristianismo. A Armênia, vale lembrar, foi a primeira nação do mundo a adotar oficialmente a religião cristã, no século 4. “Há crianças sentadas na minha frente/ para elas, talvez eu esteja rezando”, diz o poema “Inverno, as pedras”, de Anna Davtyan.
Haroutiounian, artista que se identifica com a diáspora armênia, carrega o trauma de um povo que sofreu um genocídio. A pressão internacional para que a Turquia reconheça sua responsabilidade na morte de 1,5 milhão de armênios segue aumentando. Genocídio, entendido como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, é indissociável da ideia de pertencimento armênio, especialmente para a diáspora — os armênios que viviam na Anatólia, região da Turquia atual, foram os que mais sofreram com a perseguição turca entre o final do século 19 e a Primeira Guerra Mundial.
É preciso falar e lembrar do que aconteceu, mas, se palavras não são suficientes, outras narrativas são possíveis. Uma ilha chamada Armênia se lança a essa questão fundamental: apesar do passado turbulento, a Armênia está lá. O livro é uma declaração de amor a uma terra e a um povo. Se não há referências diretas ao genocídio ou aos episódios recentes que marcaram o país, isso é também uma maneira de elaborar um luto e olhar adiante. “Quando eu chegar ao fim da rua vou morrer/ perto do prédio branco está o estranho parado de fuzil na mão”, diz o poema “O estranho de fuzil na mão”, de Marine Petrossian.

Fotografia e poema parecem operar um jogo mágico de cura. Veios vermelhos nas montanhas nevadas são sangue e uma marca de tiro na parede se transforma, numa inversão, ou revelação fotográfica, em rocha circundada por neve. Memória inventada de uma terra montanha, uma ilha. A câmera segue e o tempo atravessa as estações, inverno, primavera.
“Uma mulher sem cabeça olha por trás da janela”, diz o poema “a casa”, de Anna Davtyan. Onde colocar tudo isso, desejo e medo, senão em casa? Se casas são lugares de memórias, Haroutiounian inventou esse livro para abrigá-las.
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
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