

Literatura brasileira,
Nossas peles, uma só
Em livro-diálogo, Lázaro Ramos faz piada enquanto fala sério de racismo e representação em uma conversa envolvente e ainda necessária
14maio2025Agorinha mesmo, antes de escrever este texto, telefonei para a minha mãe. Liguei para perguntar se ela está bem, saber das novidades, pedir desculpas pelo tempo, tanto tempo, que não dou notícias e pedir sua bênção. Isso eu aprendi com o Lazinho: antes de fazer uma coisa importante, tente se conectar com sua mãe.
Lazinho, o Lázaro Ramos, convidado d’A Feira do Livro 2025, acaba de lançar seu segundo trabalho na literatura adulta, Na nossa pele: continuando a conversa. E é justamente disso que se trata, de uma conversa. A sequência de um papo que começou em seu trabalho anterior, Na minha pele (2017). Em ambos, se destaca o cuidado com a linguagem. Lázaro apresenta uma característica admirável a quem se propõe a escrever: a forma como constrói cada frase traz quem lê para perto.

O leitor se sente um amigo seu, membro da família. É algo como ler a Ligia G. Diniz em O homem não existe (Zahar, 2024) ou o Geovani Martins em Via Ápia (Companhia das Letras, 2022), ou ainda a Bruna Mitrano em Ninguém quis ver (Companhia das Letras, 2023), cada qual convidando à sua maneira, e a gente aceita e vai sofrendo junto, brigando junto, gargalhando junto. E se sente à vontade para encaixar as nossas experiências pessoais nas do autor.
Martinho da Vila tem um álbum chamado Samba enredo (1980), que até outro dia eu jurava se chamar “Pele de negro”. Eu era criança e lá em casa esse disco tocou até quase furar. A capa traz a imagem de um homem negro sem camisa, uma foto tão aproximada que talvez por isso eu tenha cravado na memória essa confusão do título. São sambas dos anos 50, 60 e 70, registrados no estilo peculiar do Martinho. Ali tem toda uma reconfiguração da história oficial do Brasil na perspectiva dos sambistas. Ao reinterpretá-los, o mestre da Vila tanto os apresenta a quem veio depois quanto convida a refletir sobre realidades que ainda estavam, e estão, presentes.
Fiz confusão também com os títulos dos livros de Lázaro. Cheguei a achar que o seu anterior já se chamasse Na nossa pele, pelo efeito-convite que a linguagem dele tem (as nossas peles se tornaram uma só logo de cara), mas também porque pensei que o papo já estava todo dado. E não estava, é claro. A literatura de Lazinho é para o hoje. O Brasil mudou demais de 2017 para cá. As questões raciais, de identidade, de representação, a maneira como a gente se relaciona com a luta antirracista mudou. Faz todo sentido a continuação dessa prosa.
Outro caminho
Estatísticas sobre a população negra no país estão disponíveis e de fato são assustadoras. Dados sobre a evasão escolar, salários mais baixos, assassinato de jovens, a falta de anestesia em partos de mulheres negras — considerando que elas suportariam mais a dor com seus quadris mais largos e por isso seriam parideiras excelentes. Seria fácil cair na tentação de explorar esses números fazendo análises de estatístico, tirando conclusões e decretando verdades. Mas para explorar esses temas com a profundidade e a atenção que merecem, Lázaro vai por outro caminho.
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Ele evita o tom professoral fazendo piada, mas falando sério; quando dá rasteiras no leitor mudando um pouco o que dissera antes, e assim o chacoalha, o faz acordar. “Nem parecia que o racismo existia. Xiii, falei a palavrinha pela primeira vez na conversa. E aí, se incomodou? Tá achando identitária essa fala? Sigamos…”, provoca.
Dá para afirmar com algum grau de certeza que a intenção do autor foi fazer um livro que as pessoas leiam, se identifiquem e, se possível, se fortaleçam. Talvez não precisemos de mais um título de diagnósticos do qual as pessoas saiam enfraquecidas. As histórias contidas em Na nossa pele apontam no sentido contrário: o de entender que é importante não silenciar certos assuntos, só que não se deve estacionar na dor. É uma tentativa de encontrar recursos, pessoais e coletivos, que emancipem, que libertem.
O efeito-convite da linguagem de Lázaro impacta o leitor (nossas peles se tornaram uma só)
Uma estratégia francamente utilizada, e bem sucedida, é a exposição pessoal. Imagino que não seja fácil para um ator, diretor, apresentador, cineasta e escritor compartilhar certos fatos doídos, como o episódio em que lembra ter sido abordado por um turista estrangeiro em um hotel, pedindo para trazer uma toalha.
Falei com toda tranquilidade do mundo que não sabia onde estavam as toalhas. Eu ainda não tinha percebido a confusão que ele havia feito. Ele subiu o tom, me tratando como um empregado insolente que não o estava atendendo adequadamente, e por fim perguntou se pelo menos um café eu poderia providenciar. Só então a ficha caiu. Bradei com ele, disse tudo aquilo que geralmente falamos quando estamos numa situação dessas e, antes de me acalmar, percebi que todas as almofadas do sofá tinham como estampa imagens de Debret, um dos principais artistas responsáveis por retratar o Brasil colonial.
Recebo como um ato de generosidade e coragem essa estratégia para chegar ao leitor. Sinto arrepios de ódio quando me coloco no lugar de uma criança que vê sua mãe levando no rosto um tapa da patroa. Fico desorientado se me visto na pele de um adolescente sem dinheiro para pagar a corrida de táxi e, pior, sem saber para onde levará sua mãe gravemente doente. Vivo a vida de um adulto que hoje é capaz de admitir que ainda sente enorme falta dessa mãe, e que há muito dela nele.
Na nossa pele é um livro-diálogo que planta a mensagem de que cada um de nós pode contribuir para que possamos viver de forma mais pacífica e justa. A mensagem de que o Brasil, tanto em seu corpo quanto em sua alma, é produto de uma construção coletiva, e por isso é possível — difícil, mas possível — que busquemos o entendimento como forma de solucionar os conflitos. Não devemos desistir.
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