Literatura,

Sermão até a montanha

Romance de estreia de James Baldwin, finalmente publicado no Brasil, mostra como mistura de semibiografia e pregação religiosa deu origem a seu estilo multifacetado

05maio2025

Em entrevista ao New York Times, em 1985, James Baldwin revelou que Proclamem nas montanhas, seu romance de estreia lançado três décadas antes, surgiu da necessidade de lidar com o que mais o machucava. Uma dor intimamente relacionada ao pai, um pastor rigoroso e pouco afetuoso. 

Não à toa, a obra é descrita como “semibiográfica” por Márcio Macedo, pesquisador que assina o perfil de Baldwin na edição publicada agora em maio pela Companhia das Letras. 

As semelhanças entre o autor e o protagonista, John Grimes, começam pela cor da pele; seguem nos cenários do romance — o Harlem, em Nova York, onde nasceram e foram criados; uma casa abarrotada de crianças, empoeirada, pouco aconchegante —; e convergem nas expectativas e questionamentos sobre pertencimento no mundo. Já surgem aí os temas que seriam centrais em toda a obra do escritor: raça, religião e sexualidade (não necessariamente nessa ordem).

Proclamem nas montanhas se passa no aniversário de catorze anos de John, que acorda temeroso pelo esquecimento da data pela família. O pai, Gabriel, já havia saído para trabalhar e o irmão, Roy, reclama do homem à mãe, Elizabeth, questionando por que a demonstração de amor dele era, na verdade, de violência e falta de liberdade. “Vocês têm sorte”, diz ela. Resposta ressentida pelo filho mais novo — e também por John, que nutre um ódio secreto pelo pai.

As marcas religiosas do romance estão na linguagem apocalíptica e na retórica evangélica negra

Parte do mal-estar da casa vem do silêncio sobre o passado. Os pais ocultam dos filhos suas origens, além de escolhas que, para Gabriel e Elizabeth, os afastavam da santidade. A mãe envelhece sob o peso do próprio mistério, enquanto o pai demonstra uma raiva pouco coesa à rotina devotada a Deus. 

Por trás do amargor familiar, está o não lugar dos negros num país marcado por uma violenta e indigesta segregação racial. A intimidade deles é revelada ao leitor no segundo capítulo. Nele, é exposto o contexto da Grande Migração, entre por volta de 1915 e 1970, quando cerca de seis milhões de afro-americanos migraram do sul para o norte dos Estados Unidos. Nesse deslocamento, como aponta Baldwin, há dor, solidão, medo, raiva, injustiças e fracassos, ainda mais cruéis para as mulheres negras.

Alheio às vulnerabilidades dos pais, John deseja uma vida diferente, distante da oferecida por eles, distante do Harlem, do Templo dos Batizados pelo Fogo — igreja frequentada pela família, onde Gabriel é diácono — e, consequentemente, de Deus e das promessas feitas aos “salvos”. 

Ele nega tudo isso. Quer, quem sabe, ser poeta, reitor de faculdade, astro. Usar roupas finas, ricas, ir ao cinema quando quiser. Quer, acima de tudo, viver o amor, esperança quase escondida entre as lamentações do adolescente, que olha, da janela de casa, as crianças vizinhas brincarem na rua e deseja ser como elas. Esse sentimento aparece na forma de uma entrega espiritual característica das black churches, guiando-o à montanha — local que, no romance, aparece como desafio e linha de chegada, mas também como um compromisso para aqueles que querem se relacionar com Deus.

“A religião, para Baldwin, envolve uma duplicidade. Ao mesmo tempo que é uma possibilidade de salvação, é também uma limitação. Por isso, o considero um escritor dos impasses, que sempre nos provoca”, diz o pesquisador Ronaldo Vitor da Silva, autor do posfácio de Da próxima vez, o fogo, livro mais recente de Baldwin publicado no Brasil antes de Proclamem nas montanhas. “Ele não é resolutivo, nem conclusivo, não dá respostas fechadas para quase nenhum dos problemas que aponta. São questões levantadas para a gente pensar. É como ouvir um pouco de jazz: muitos instrumentos, muita bagunça, muito som, mas é gostoso”, diz o pesquisador. 

Escrita e pregação

James Baldwin foi pastor mirim dos catorze aos dezessete anos na Assembleia Pentecostal de Fireside, igreja localizada no Harlem, influenciado por seu padrasto, o pastor David Baldwin — ele nunca conheceu o pai biológico. Não por acaso, a escrita em Proclamem nas montanhas lembra sermões religiosos: energizantes, cheios de metáforas e frases marcantes que convidam à autorreflexão. 

No artigo “The Sermon as Essay: James Baldwin as Contemplative Preacher” [O sermão enquanto ensaio: James Baldwin como pregador contemplativo”], o pastor e acadêmico Frank A. Thomas afirma que Baldwin, como um pregador negro, constrói um “ensaio-sermão que conduz o ouvinte/leitor a uma jornada interior a respeito do que acredita sobre Deus e a religião”, mas também guia este ouvite/leitor no reconhecimento e superação dos “efeitos do racismo e da supremacia branca”. As marcas religiosas no texto de Baldwin, segundo o pesquisador, estão na linguagem apocalíptica, na poesia e na retórica evangélica negra que “incorpora elementos centrais de vingança moral e julgamento”. 

A tradução do romance, feita por Paulo Henriques Britto, preserva essas características, sendo fiel à forma endurecida com que Baldwin escreve sobre as violências raciais, comuns a ele e a seus personagens, e que ainda o levaram a atuar na luta pelos direitos civis e contra a segregação racial nos Estados Unidos nos anos 60, tornando-se figura essencial ao lado de Martin Luther King e Malcolm X.

Unindo militância política e literatura, Baldwin publicou mais de vinte livros, entre romances, ensaios, peças teatrais e coletâneas de poemas e contos. Desde 2018, essa produção começou a ser resgatada no Brasil pela Companhia das Letras, num ciclo que já soma seis publicações: O quarto de Giovanni, Terra estranha (ambos lançados em 2018), Se a rua Beale falasse (2019), Notas de um filho nativo (2020), Da próxima vez, o fogo (2024)e finalmente Proclamem nas montanhas, até agora inédito no país.

A cargo das novas ediçõs dos livros de Baldwin no Brasil, a poeta e editora Alice Sant’Anna diz que é justamente o estilo “inesgotável e múltiplo” o que torna a escrita de Baldwin tão atual. “Ele fala sobre religião, formação individual e coletiva, sexualidade e racismo sem seguir nenhuma cartilha. Traz muito da própria vida atribulada aos textos de ficção e [também de] não ficção. Posso dizer que é difícil encontrar um autor tão bom em ambos os gêneros, é impossível reduzi-lo a um papel”, afirma Sant’Anna.

Apesar da atualiade multifacetada de Baldwin, a reedição de seus livros no século 21 teve como ponto central uma análise rigorosa do texto, observando possíveis mudanças de sentido de algumas palavras ao longo do tempo — Proclamem nas montanhas, por exemplo, foi originalmente publicado em 1953. Pensando nisso, a editora incluiu um rodapé para justificar o uso do termo “pessoas de cor”, que, como reconhece, caiu em desuso. “A linguagem muda rápido. Palavras e expressões que eram usadas com naturalidade nos anos 50 têm, muitas vezes, outro sentido hoje. Então, essa reflexão é fundamental no trabalho da edição”, diz Sant’Anna. “Quebramos a cabeça na tradução de algumas partes, pensávamos: como manter o autor atual, com uma linguagem que fale do tempo em que vivemos, mas que não fique fora do contexto da época da obra?”

Para além da linguagem, Proclamem nas montanhas oferece uma abordagem plural de problemas humanos, outra marca de Baldwin. Gabriel, o pai pastor, por exemplo, embora intempestivo e egoísta, é tratado com humanidade à medida que o autor expõe a busca do personagem por algo que o torne especial. É na igreja, junto aos “salvos”, que ele encontra um espaço de poder, o oposto da marginalização que vivia. A submissão de Elizabeth ao marido também tem raízes profundas, ligadas à culpa pela liberdade e pelo amor vividos na juventude. Mas, para ela, a referência que Gabriel representava para o lar, por mais destrutiva que fosse, ainda era melhor do que a violência do lado de fora.

“Baldwin está intimamente preocupado com uma condição humana plena, livre e ampla. Com isso, ele consegue ver o excesso das contradições das nossas complexidades. Os personagens estão sempre em conflito ético, levando suas experiências ao limite. Para mim, um homem negro, essa situação é importante, me faz reconhecer meu lugar no mundo”, exemplifica o pesquisador Ronaldo Vitor.

É nessa perspectiva que John, o protagonista do romance, assim como Baldwin, testa a si mesmo. Vive a contradição do desdém pela igreja e do anseio pela liberdade prometida na salvação. É na raiva e no amor, no medo e na coragem, que ele encontra um caminho para proclamar — e exercer — a própria subjetividade.

Quem escreveu esse texto

Bruna Martins

é jornalista.

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