

Literatura, Trechos,
A prosa inédita de Pizarnik
Publicados pela primeira vez, manuscritos dispersos da argentina se revelam em Prosa completa; leia trecho
18abr2025 • Atualizado em: 17abr2025Conhecida principalmente por sua obra poética, a escritora argentina Alejandra Pizarnik também escreveu um leque de textos em prosa que acabaram inacessíveis ou dispersos em revistas. Esse outro lado da produção literária da autora de O inferno musical se revela em Prosa completa, livro recém-lançado pela Relicário Edições, em tradução de Nina Rizzi e Paloma Vidal.
O volume inclui textos teatrais e narrativos, contos de humor, artigos, ensaios, prefácios, resenhas e reportagens. Dois livros que permaneceram inéditos até sua morte, Os perturbados entre lilases e A bucaneira de Pernambuco ou Hilda a polígrafa, também estão presentes na coletânea.

Morta em 1972, Pizarnik afirmava que a poesia a desobrigava de si e do mundo, enquanto via na prosa uma possibilidade de ver e expressar a realidade. Sua escrita, cheia de simbolismos, reflete sobre a própria palavra e perpassa a morte, a violência política, elementos pornográficos e a cultura popular — como o tango argentino.
Em Prosa completa, predominam textos marcados por diálogos e referências a outras obras artísticas e literárias. No texto dramatúrgico Os perturbados entre lilases, Pizarnik dialoga com a peça de Samuel Beckett, Fim de partida. Já em A condessa sangrenta, um de seus ensaios mais célebres, a autora narra feitos atrozes da condessa Erzsébet Báthory, antecipando o horror que passaria a tomar conta da conjuntura política após o golpe de Estado em 1976, como descreve o prólogo da escritora Ana Becciú.
Trecho de ‘Prosa Completa’
A CONDESSA SANGRENTA
O criminoso não faz a beleza;
ele próprio é a autêntica beleza.
J. P. Sartre
Valentine Penrose compilou documentos e relações sobre uma personagem real e insólita: a Condessa Báthory, assassina de 650 garotas.
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Exímia poeta (seu primeiro livro tem um prefácio fervoroso de Paul Éluard), não separou seu dom poético de sua meticulosa erudição. Sem alterar os dados reais dolorosamente obtidos, reformulou-os numa espécie de vasto e belo poema em prosa.
A perversão sexual e a insanidade da Condessa Báthory são tão evidentes que Valentine Penrose as ignora para se concentrar exclusivamente na beleza convulsiva da personagem. Não é fácil mostrar esse tipo de beleza. Valentine Penrose, no entanto, conseguiu, pois joga admiravelmente com os valores estéticos dessa história tenebrosa. Ela entra no reino subterrâneo de Erzsébet Báthory, a sala de tortura de seu castelo medieval: ali, a beleza sinistra das criaturas noturnas se resume numa silenciosa de palidez lendária, olhos dementes, cabelos da cor suntuosa dos corvos.
Um conhecido filósofo inclui os gritos na categoria do silêncio. Gritos, suspiros, imprecações, formam uma “substância silenciosa”. A desse subsolo é maléfica. Sentada em seu trono, a condessa assiste à tortura e ouve gritos. Suas velhas e horríveis criadas são figuras silenciosas que trazem fogo, facas, agulhas, atiçadores; torturam garotas e depois as enterram. Como o atiçador ou as facas, essas velhas são instrumentos de uma possessão. Esta cerimônia sombria tem apenas uma espectadora silenciosa.
A VIRGEM DE FERRO
… parmi les rires rouges des lèvres luisantes et les
gestes monstrueux des femmes mécaniques.
R. Daumal, [A virgem de ferro]
Havia em Nuremberg um famoso autômata chamado “A virgem de Ferro”. A condessa Báthory comprou uma réplica para a sala de tortura em seu castelo Csejthe. Essa dama metálica era do tamanho e da cor da criatura humana. Nua, maquiada, com joias, cabelos louros que chegavam até o
chão, um mecanismo permitia que seus lábios se abrissem num sorriso, que seus olhos se movessem.
A condessa, sentada em seu trono, contempla.
Para que a “Virgem” entre em ação, é necessário tocar algumas pedras preciosas de seu colar. Ela imediatamente responde com sons mecânicos horríveis e muito lentamente levanta seus braços brancos para que se fechem num abraço perfeito sobre o que quer que esteja perto dela — nesse caso, uma garota. A autômata a abraça e ninguém poderá desenlaçar o corpo vivo do corpo de ferro, ambos iguais em beleza. De repente, os seios maquiados da dama de ferro se abrem e aparecem cinco punhais que trespassam sua companheira viva de longos cabelos soltos como os dela.
Consumado o sacrifício, outra pedra do colar é tocada: os braços caem, o sorriso se fecha assim como os olhos, e a assassina volta a ser a “Virgem” imóvel em seu caixão.
MORTE POR ÁGUA
Está em pé. E está em pé tão absoluto e definitivamente como se estivesse sentado.
W. Gombrowicz
A estrada está coberta de neve e a sombria dama amarfanhada em suas peles na carruagem está entediada. De repente, formula o nome de uma garota de sua comitiva. Trazem a nomeada: a condessa a morde freneticamente e enfia agulhas nela. Pouco depois, o cortejo abandona a jovem ferida na neve e segue viagem. Mas, como param novamente, a jovem ferida foge, é perseguida, agarrada e reintroduzida na carruagem, que continua andando até parar novamente porque a condessa acaba de pedir água gelada. Agora a garota está nua e parada na neve. É de noite. É cercada por um círculo de tochas seguradas por lacaios impassíveis. Derramam a água sobre seu corpo e a água se transforma em gelo. (A condessa contempla de dentro da carruagem.) Há um leve gesto final da garota para se aproximar das tochas, de onde emana o único calor. Jogam mais água nela e ela permanece, para sempre em pé, erguida, morta.
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