Cinema, Flip,

Provocações plásticas e políticas

Além de promover rupturas estéticas, Glauber Rocha inaugurou o cinema como forma de protesto no Brasil

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

A reedição de Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome, de Ismail Xavier, pela Editora 34 é oportuna pois favorece a percepção de como o cinema e a crítica de cinema podem entranhar dilemas recorrentes na história da república brasileira, maculada desde seu início, no fim do século 19, pela aberração que foi a ação bélica do Estado contra 25 mil fiéis miseráveis, mas resistentes, em Canudos. 

O título do livro que aborda os dois primeiros filmes de Glauber Rocha, Barravento (1962) e Deus e o diabo na terra do sol (1964), enfatiza a conhecida profecia de Antônio Conselheiro em Os sertões, de Euclides da Cunha, homenageado da Flip neste ano — “o sertão vai virar praia, e a praia vai virar sertão” —, entre outras figuras paradigmáticas da história popular, como Lampião, Corisco e Padre Cícero. 

A violência do cangaço emerge em chave alegórica. Manuel, vaqueiro habitante do alto sertão em Deus e o diabo na terra do sol, interpretado por Geraldo Del Rey, reage à exploração do coronel e o mata. Rosa, sua mulher sensual, vivida por Yoná Magalhães, a reboque do marido, conquista subjetividade. Othon Bastos, jovem brilhante ator baiano, já tarimbado nas artimanhas de Brecht, empresta seu corpo a Corisco, o cangaceiro remanescente da derrota de Lampião, que com ele dialoga sobre a miséria do povo numa cena antológica, em que contracena consigo próprio alterando apenas a voz, alcançando o efeito do distanciamento crítico. A encenação alegórica sobrepõe temporalidades e condensa tensões que não se resolvem na história. 

A figura angustiada do jagunço Antônio das Mortes, fadado a matar para superar a injustiça social, desdobra-se no filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, com que Glauber Rocha consolidou seu prestígio no exterior. A inspiração continua tributária de beatos que alimentam a religiosidade sertaneja em sua expectativa de chegar e ver ou virar mar, e de cangaceiros, guerreiros da causa do povo. 

A cultura popular domina a narrativa na figura do cego Júlio, cantador do filme. A oscilação dialógica nos termos de Bakhtin com a cultura erudita irrompe na música modernista de Villa-Lobos, sobreposta à paisagem seca do sertão. O tom épico, ritualístico, operístico, grandioso eleva o tom de uma interpretação dilacerante da história nacional por meio de um cinema que articulou, de forma original, política e cultura no Brasil, enquanto propunha ruptura estética no plano internacional. 

Sertão mar é um estudo crítico de um cinema que busca sintetizar o país, mas é também, sobretudo, um livro sobre como analisar filmes. A relevância dessa contribuição não é pequena. Permanece como advertência a abordagens que ou abstraem imagens e sons e se perdem em intenções teóricas irrelevantes, ou reduzem os filmes a exemplos de teorias exógenas, anulando a própria interpretação, limitada a expor a filiação de quem escreve a autores em geral alheios à filmografia em exame. 

‘Sertão mar’ é um estudo crítico de um cinema que busca sintetizar o país, mas é também, sobretudo, um livro sobre como analisar filmes

O livro expõe a estratégia comparativa a partir do embate com imagens e sons de cada obra. Ismail Xavier privilegia pares de filmes, escolhidos para salientar as diferenças entre “opacidade e transparência”, título do primeiro livro publicado pelo autor, e a oposição, que estrutura a sua visão do cinema. 

Assim, O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, produção paulista baseada na peça de Dias Gomes, contrapõe-se a Barravento. Do mesmo modo, O cangaceiro, de Lima Barreto, produção da Vera Cruz, filmada dez anos antes, bem longe do sertão nordestino, no interior do estado de São Paulo, funciona como contraponto a Deus e o diabo

A análise de cada filme propõe a delimitação e o resumo das partes que o compõem. Com a seleção de algumas sucessões de planos, a sua descrição e as conexões entre eles promovidas na montagem, Ismail Xavier enfrenta no corpo a corpo com o seu objeto o maior desafio da crítica de cinema. A construção da interpretação inclui enquadramento, movimento de câmera, som e articulação desses elementos na montagem, e a inferência das maneiras como a obra capta e expressa as relações sociais nas quais se insere. 

O crítico é enfático na rejeição de opiniões e/ou intenções de realizadores expressas em entrevistas ou em materiais extrafílmicos. Vale o que se inscreve no filme. Afinal, são essas imagens que delimitam uma mesma interface com a qual espectadores em tempos e espaços diversos interagem. Vale observar que o livro foi originalmente publicado dois anos depois da morte prematura do diretor. 

A análise sedimentada na pesquisa detalhada da articulação de planos operada em cada filme propicia a interpretação da inserção da obra no debate de ideias de seu tempo. Ismail Xavier transita com desenvoltura nesse terreno estratégico que é o da mediação entre a descrição empírica e a reflexão teórica que ela suscita. 

O mapeamento das imagens contribui, como o autor demonstra no caso de Barravento, para sugerir interpretações para além do discurso ideológico que se explicita na repercussão imediata do filme. O que as imagens falam que os diálogos — do e sobre o filme -— não mencionam? 

Sua formação como montador no curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP talvez tenha favorecido o desenvolvimento da metodologia que envolveu o manuseio dos filmes, a atenção à articulação quadro a quadro, em película, na moviola. 

Câmera na mão

A obra de Glauber Rocha mediou o debate sobre um movimento artístico que favoreceu a filmagem em locação, sem iluminação artificial, a câmera na mão, atores profissionais contracenando com não profissionais, jump cuts, enquadramentos nervosos e em movimento, traços do neorrealismo e da nouvelle vague e elementos da montagem inspirada em Eisenstein, sem se contentar com a posição marginal que a situação geopolítica ao sul do Equador lhe impingia.  Seu cinema potencializou as condições locais de produção e fez delas marca estilística. 

O crítico contribui para a circulação da obra. Com um doutorado na USP e outro no pioneiro programa de pós-graduação em estudos de cinema da New York University (NYU), além de diversos estágios como professor e pesquisador em Paris, Ismail Xavier é membro da primeira geração mundial de críticos de cinema com formação acadêmica. Num comentário sobre o livro, Robert Stam salienta a originalidade do percurso da obra de Ismail Xavier inserida no panorama multicultural que emerge de sua desconstrução do eurocentrismo. 

A reflexão sobre o cinema brasileiro está cada vez mais presente na reflexão literária e das ciências sociais, tradicionalmente mobilizadas para debater e interpretar a conjuntura ou o pensamento social brasileiro. Interpretações do Brasil permeiam o cinema e as artes audiovisuais brasileiras. 

No século 21, em meio ao advento da tecnologia digital, quase sessenta anos depois do lançamento de Deus e o diabo na terra do sol e 36 anos após a primeira edição deste livro, as polaridades de Sertão mar continuam a reverberar. Mas o Brasil mudou, agora com o peso deslocado para a costa urbana, industrial, caótica e com a presença de novos referenciais religiosos. 

Ismail Xavier transita com desenvoltura no terreno estratégico que é o da mediação entre a descrição empírica e a reflexão teórica que ela suscita

Os textos que foram adensando o livro original incluem a introdução do próprio autor à edição de 2007, na qual ele pinça os sentidos do livro em sua época, a revelação do Glauber Rocha religioso e a inspiração na ideia de figuração de Erich Auerbach. A edição reproduz o posfácio de Leandro Saraiva, ex-aluno, que reconstitui os parâmetros conceituais do livro em suas dimensões teórica e metodológica, e traz ainda uma entrevista de Vinícius Dantas com o autor, publicada originalmente em 1983 no “Folhetim”, então suplemento cultural semanal da Folha de S.Paulo, em que, no calor da hora, discutem-se as provocações que o livro introduz ao revelar um Glauber Rocha menos plano e mais denso em suas ambiguidades viscerais do que até então se admitia. A nova edição traz ainda o prefácio de Mateus Araújo à tradução francesa do livro, publicada em 2008, em que se delineia a trajetória intelectual do autor. 

Em um mundo saturado por telas — telas de diversos tamanhos, telas móveis, telas interativas —, o cinema se multiplicou, diversificou-se e se diluiu em uma pluralidade de formatos. Pensar o cinema de Glauber Rocha com Ismail Xavier em Sertão mar ajuda a perceber a presença do passado no presente; a desarticular mitos fundantes que desconsideram a violência de origem; a refletir sobre o desafio de enfrentar para desarticular, sem reforçar, as diversas formas de violência que saturam a sociedade brasileira contemporânea.           

Quem escreveu esse texto

Esther Hamburger

É autora de O Brasil antenado: a sociedade das novelas (Jorge Zahar).

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.