Literatura,

Milhões de teorias

Autora de conto que viralizou nas redes sociais publica seu primeiro livro

28fev2019

O trânsito não andava e comecei a ficar ansiosa dentro do carro. Acho que dei pequenos murros no volante. Tudo o que eu mais queria era voltar para os personagens perturbados e doentes (e humanos e atuais e iguais a você e a mim) do livro Cat Person e outros contos. Havia quanto tempo eu não ignorava por completo a Netflix e o Stories e me entregava obsessivamente a palavras impressas? 

Sou escritora, faço algumas resenhas e tenho redes sociais movimentadas — por esse motivo, recebo e compro muitos livros toda semana. Farei agora um desabafo doloroso e vexatório: todo mês abandono a maioria deles antes da página 40. Chego à metade, com algum sacrifício, de uns três ou quatro. Vez ou outra, acontece de eu ler um inteiro num folego só. Foi assim, recentemente, com os ótimos A gorda, de Isabela Figueiredo, e A uruguaia, de Pedro Mairal (ambos da Todavia).

Mas o que vou narrar aqui é raríssimo. É mais do que sentir prazer com uma leitura. Meus dias foram obliterados pela pré-adolescente que anseia ter os pés beijados por um ator de terror-pornô, pelo menino bonzinho que fantasia esfaquear mulheres com seu pênis submisso, pelo casal queridão que abusa de um jovem viciado em maus-tratos, pela profissional que deseja arrancar um naco de carne do braço de um colega assediador, pela mulher que vira comida viva de um bicho (ou da própria loucura? Ou do marido e do médico que, como bons homens que são, sempre preferem acreditar que mulher é tudo maluca?). 

Essa adição intelectiva só havia me acontecido, muitos anos atrás, com o vislumbre das perversões camufladas dos personagens de Nelson Rodrigues, a crueza autoral de John Fante, a angústia escancarada de Clarice Lispector e a ode peniana de Philip Roth. 

Desde que postei no meu Instagram que os contos de Kristen Roupenian estavam me deixando obcecada, já recebi alguns convites literários para debater a obra. Senti um medo enorme ao pensar no quanto a nossa necessidade de rotular (sobretudo o que nos incomoda) poderia simplificar o talento escandaloso da autora. 

Por favor, não digam que é sobre “o amor nos tempos do smartphone” ou sobre a “urgente discussão de gênero” ou, ainda, “a estreia de uma forte porta-voz literária do movimento #metoo”. Por fim, pelo amor, não a coloquem em mais um desses terríveis “compilados de autoras contemporâneas feministas”. Não tem nada menos feminista do que precisar juntar trinta mulheres para que um trabalho tenha alguma força. 

Roupenian, sozinha, ou muito bem acompanhada da sua mente sombria, perspicaz e detalhista, nos esmaga a cada página, com frases como: “Todo mundo nessa festa podia morrer hoje, incluindo eu mesmo, e eu não ia dar a mínima”; “[…] um tipo de garota que é luminosa naturalmente, em quem até a sujeira e as roupas feias podem servir de ostentação: ‘viu, nem isso me prejudica’”; “[…] quando conseguiam emplacar duas ou três boas piadas em sequência, aquilo trazia uma espécie de euforia, como se os dois estivessem dançando”. 

Conto a conto

Os melhores contos são “Cat Person”, “Aquela que morde”, “O cara legal”, “Seu safadinho”, “Look at Your Game, Girl”, “Vontade de morrer” e “O garoto na piscina”. São mais fracas as histórias “Sardinha” e “Os corredores noturnos”, e bem ruinzinhas as “Não se machuque” e “O espelho, o balde e o velho fêmur”.

O conto que dá nome ao livro, imagino que você, leitor desta Quatro Cinco Um, já saiba, foi publicado em dezembro de 2017 no site da revista The New Yorker. Logo se tornou uma febre. Milhares de discussões e teorias e compartilhamentos. 

A história é incômoda (e excelente) porque fala de uma noite que já aconteceu com muitas de nós

Nele, a jovem descolada Margot conhece o trintão desengonçado Robert e eles se apaixonam virtualmente. Contudo, a intimidade real (e transar com alguém é sempre muito mais do que apenas o ato em si) frustra Margot (o corpo dele, o jeito, o papo, a pegada), e, a partir daí, sua atitude foi exaustiva e compulsivamente interpretada em debates na internet: ora cruel, ora como a única reação e saída possíveis para uma pobre jovem vítima do machismo.

Minha teoria sobre o sucesso do conto vai para um caminho bem diferente desses dois extremos. A história é profundamente incômoda (e excelente) porque fala de uma noite que provavelmente já aconteceu com muitas de nós, mulheres, e, por isso, tínhamos certeza de que era só mais do mesmo, nada de mais, coisas da vida. 

As muitas lentes e as variadas camadas que a autora dispõe para narrar o que poderia ser apenas uma transa ruim nos convida a um voyeurismo tão recreativo quanto dilacerante. 

Ocorre que — e lendo vamos nos dando conta dessa ferida disfarçada por uma casquinha translúcida — transar sem vontade (ou até com certo nojinho) não é nem um pouco bacana nem deveria ser a norma. Transar porque “parar no meio para explicar para o cara que você perdeu a vontade” pode significar assumir uma postura infantil ou arriscada é a prova cabal de que evoluímos menos do que pensávamos desde os tempos da nossa bisavó. Mas daí a dizer que é um “estupro consentido” eu deixo para estudiosos de comportamento e militantes feministas (eu os respeito e admiro, mas não saberia comprar essa briga). Além do que, muitos homens também reclamam, e estão em seu direito, de não serem exatamente bem lidos e interpretados na hora do sexo.

Nas minhas preguiçosas pesquisas no Google, não descobri se Kristen Roupenian tem alguma formação em psicanálise, mas é impossível não pensar na teoria do perverso polimorfo e na obra-prima de Freud, O mal-estar na civilização. Tanto o conto “Aquela que morde” quanto “Seu safadinho” são aulas de como podemos, através da fantasia e da literatura, percorrer com graça e requintes de consciência os nossos mais resguardados recalques. 

Kristen Roupenian e seus protagonistas sabem os preceitos para estar neste mundo de forma que obtenham respaldo material e social; apesar disso, nenhuma das impostas regras civilizatórias os impede de flertar (e aqui entra sua genialidade e o motivo pelo qual atrai tantos leitores) com seus demônios infantis, abafados e universais.

Quem escreveu esse texto

Tati Bernardi

Escritora e roteirista, é autora de Homem-objeto e outras coisas sobre ser mulher (Companhia das Letras).