
Literatura, Trechos,
O verão de 58 de Annie Ernaux
Em Memória de menina, a escritora francesa narra uma das épocas mais dolorosas de sua vida e que definiu sua carreira literária
16abr2025Vários acontecimentos importantes tomaram a vida da jovem Annie no verão de 1958. Em Memória de menina, que chega às livrarias em maio pela editora Fósforo em tradução de Mariana Delfini, a Nobel de Literatura Annie Ernaux escreve sobre esse passado que, durante muito tempo, ela tentou esquecer.
Em um ensaio autoficcional, a autora revisita um contexto vivido há mais de cinquenta anos. A mudança de cidade, a primeira experiência sexual, a interrupção de sua menstruação e um transtorno alimentar são alguns dos episódios que marcaram a trajetória de Annie e que ela busca contar da forma mais detalhada possível.
Ao reconstruir a menina de dezessete anos daquele verão, a escritora francesa mostra como as dores vividas influenciaram sua percepção de gênero, sua consciência política e seu trabalho na literatura. Assim, Ernaux mergulha na própria memória e observa a constante presença da jovem retratada em si mesma.
Trecho de ‘Memória de menina’
Passaram-se mais de dez anos, onze verões a mais, somando cinquenta e cinco anos de intervalo desde o verão de 1958, com guerras, revoluções, explosões de centrais nucleares, tudo aquilo que já está em vias de esquecimento.
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O tempo que tenho pela frente está diminuindo. Haverá um último livro, necessariamente, como há um último amante, uma última primavera, mas nenhum indício de qual será. A ideia de que eu poderia morrer sem ter escrito sobre ela, que muito cedo chamei de “a menina de 58”, me assombra. Um dia não haverá mais ninguém para se lembrar. Aquilo que essa menina, e não outra, viveu continuará sem explicação, terá sido vivido em vão.
Não digo luminoso nem novo, muito menos feliz, mas nenhum outro projeto de escrita me parece vital, capaz de me fazer viver acima do tempo. Só “aproveitar a vida” é uma perspectiva insustentável, porque sem um projeto de escrita cada instante parece ser o último.
O fato de eu ser a única que se lembra, como acredito que seja, me encanta. Como se fosse um poder soberano. Uma superioridade definitiva em relação a eles, os outros do verão de 1958, que me foi legada pela vergonha dos meus desejos, dos meus sonhos desatinados pelas ruas de Rouen, a menstruação interrompida aos dezoito anos como se eu fosse uma velha. A grande memória da vergonha, a mais minuciosa, mais intransigente que qualquer outra. Essa memória que, em suma, é o dom especial da vergonha.
Eu me dou conta de que isso que escrevi busca me distanciar do que me retém, do que, como nos pesadelos, me impede de ir em frente. Uma maneira de neutralizar a violência do começo, do salto que estou me preparando para dar a fim de me juntar à menina de 58, ela e os outros, colocá-los todos de volta naquele verão de um ano que está mais distante de hoje do que, na época, estava de 1914.
Olho a foto de identidade em preto e branco, colada dentro do boletim produzido pelo pensionato Saint-Michel de Yvetot para os exames de conclusão, Ensino Secundário — Línguas Clássicas. Vejo, levemente de lado, um rosto oval regular, nariz reto, maçãs do rosto discretas, testa grande sobre a qual — certamente para reduzir o tamanho dela — caem, de um jeito curioso, a ponta de uma franja ondulada de um lado e, do outro, uma mecha em formato de pega-rapaz. O resto do cabelo, castanho-escuro, está preso atrás da cabeça num coque. Os lábios esboçam um sorriso que poderia ser descrito como doce, ou triste, ou ambos. Um suéter escuro, de colarinho alto e mangas raglã, cria um efeito austero e alisado de batina. No conjunto, uma menina bonita mal penteada, transmitindo uma impressão de doçura, ou indolência, a quem hoje daríamos mais que os dezessete anos que ela tem.
Quanto mais observo a menina da foto, mais me parece que é ela quem me olha. Será que essa menina sou eu? Eu sou ela? Para que eu seja ela, seria preciso que
eu fosse capaz de resolver um problema de física e uma equação de segundo grau
eu lesse o romance inteiro inserido nas páginas da revista Bonnes soirées a cada semana
eu sonhasse em finalmente ir a um “bailinho”
eu fosse a favor da manutenção da Argélia francesa eu sentisse os olhos cinza da minha mãe me seguindo por todos os lugares
eu não tivesse lido nem Beauvoir, nem Proust, nem Virginia Woolf, nem etc.
eu me chamasse Annie Duchesne.
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