Poesia,

Poesia política

“Etiópia” e “A orca” no avião mostram que o feminino é o lugar do desvio e da insubmissão ao poder

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Mais do que nunca, a poesia produzida no Brasil hoje é política. Espaço do corpo e da voz, da língua em estado de choque e condensação, a poesia tem sido lugar de combate da linguagem e com a linguagem, por meio dela e a partir de suas potencialidades líricas e bélicas. Podemos acrescentar: mais do que nunca, a poesia produzida no Brasil por mulheres é política, densamente política. Em dois livros recém-lançados (estreias, vale destacar), Etiópia, de Francesca Angiolillo, e A orca no avião, de Sofia Mariutti, esse aspecto decisivo aparece de modo significativo e ganha contornos singulares em cada projeto. 

Etiópia, como desde o título parece ser evidente, pode ser lido como livro de viagem, um conjunto de poemas marcado pelo deslocamento no tempo e no espaço. A presença das memórias familiares se mistura à reflexão sobre o colonialismo e a emigração, a fome e as catástrofes sociais. Sonoro, o nome Etiópia funciona em certos poemas como estribilho, móbile da memória a recordar passagens da vida, parentes mortos e símbolos de guerra e dominação. 

A elaboração dos poemas da primeira seção do livro, dedicados ou relacionados a diferentes lugares — Teerã, Roma, Havaí — não se dá sem a exploração de detalhes que, imiscuídos à tessitura sonora dos versos, participam da tarefa de estranhar a percepção do leitor e mobilizar os seus afetos para circunstâncias duras como a violência, a pobreza, a poluição extrema. Tudo isso se dá em meio às reflexões muito pessoais sobre a ausência dos seus, à relação insistente de cores com o passado — há toda uma memória cromática que se inscreve em Etiópia — e às estratégias narrativas que marcam tantos poemas da segunda (e mais antropológica) seção.

Música truncada da fala

Já em A orca no avião, Mariutti desdobra, quase sempre, as potencialidades do poema curto, sua energia concentrada e capacidade de surpresa e humor. Numa tradição que vem do modernismo paulista e vai desaguar no estudo algo sistemático que boa parte da poesia brasileira das últimas décadas faz da oralidade e da comunicação despojada e coloquial, o livro investiga a música truncada da fala e mostra como ela ainda guarda muito do que a língua tem de melhor (a capacidade inventiva) e é capaz de revelar, se analisada com atenção, preconceitos, dificuldades, violências de todo tipo, escondidas no tecido social brasileiro. 

A alegria espontânea de alguns achados verbais, quase sempre devidos a uma interessante capacidade de escuta do cotidiano, vêm acompanhados de ironia contrastante, de um olhar armado contra o que, naturalizado no fluxo comum do mundo, é pura desolação, violência, opressão e silenciamento.

Num poema como “ai de mim”, o lamento jocoso dá lugar à afirmação do comportamento socialmente inesperado, a recusa ao lugar codificado de assentar juízo e casar-se, “ter marido”. O que está implícito aí, uma relação desigual entre homens e mulheres que se dá sempre em desfavor delas, vai se tornar visível e explícito no poema (sem título) formado apenas pela palavra VAGABUNDA, grafada em alternância de cores e de modo sequencial, sem espaços, numa trama de letras que vai mostrando os termos ofensivos e objetificantes que se desdobram: “bunda”, “dava”, “vagabunda”, teia sonora e imagética que se associa, como algema, ao universo feminino numa sociedade de bases patriarcais. 

O poema central, de onde vem o título, apresenta faceta diversa do olhar politicamente informado que a poeta lança sobre a realidade ao redor: ali, o interesse recai na solidão de uma baleia, sua vida em ambiente hostil e cada vez mais ameaçado, metáfora, quem sabe?, da vida confinada a que todos, animais, homens, corpos d’água, estão submetidos no universo do capital sem limites. 

Projetos muitos particulares, realizações bastante específicas pelos sentidos que propõem e pelos recursos que mobilizam, os dois livros atestam a força do dado poético entre nós, a sua urgência e atualidade; do mesmo modo, Etiópia e A orca no avião, com o vigor (e também limitações eventuais) com que reinventam a tradição da poesia política brasileira, dão a ver que, ainda e sempre, o feminino é o lugar do desvio e da insubmissão, do que não se deixa capturar e que, por isso, propõe olhar o mundo com outros olhos.  

Quem escreveu esse texto

Gustavo Silveira Ribeiro

É autor de O drama ético na obra de Graciliano Ramos (Editora UFMG).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.