Infantojuvenil, Poesia,

O mestre do nonsense

Lewis Carroll é especialista em criar universos cativantes que rejeitam o senso comum

13nov2018 | Edição #6 out.2017

Apesar de ter origens muito mais antigas, como a tradição oral folclórica, o que conhecemos hoje como literatura nonsense foi popularizada no Reino Unido, ainda no século 19, principalmente pelos autores Edward Lear (1812-88) e Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-98). A partir da fama das obras deste último, o gênero se espalhou mundo afora. É dele o poema considerado a obra quintessencial dos versos nonsense: “Jabberwocky”, incluso no livro Alice através do espelho, de 1871. Outro exemplo frequente quando se fala no assunto também é de Carroll, o poema narrativo “The Hunting of the Snark”, de 1876, lançado agora pela Galera Junior como A caça ao Snark.

Grosso modo, a literatura nonsense se caracteriza pelo desafio às normas de razão e lógica e da própria linguagem, incluindo o uso de artifícios como neologismos e palavras-valise — o termo em inglês, portmanteau, é usado nesse sentido pela primeira vez por Carroll. Em Alice através do espelho, Humpty Dumpty explica à menina as palavras estranhas de “Jabberwocky”: “You see it’s like a portmanteau — there are two meanings packed up into one word” (“Veja bem, é uma palavra-valise: dois significados embrulhados em uma palavra só”, na tradução de Sebastião Uchoa Leite).

Carroll, é claro, quase nunca explicava motivos, inspirações ou mesmo suas invenções. O resultado é uma série de teorias sobre diversos detalhes de suas obras, como a formação da palavra-valise que deu origem ao termo “snark”. Uma delas, citada em diferentes livros, é que se trata da junção de snake, serpente, e shark, tubarão. Daí o título da tradução brasileira mais conhecida da obra, A caça ao Turpente, de Alvaro Antunes, publicada em 1984 pela Interior Edições. O poema também foi traduzido por Jorge Bandeira como A caçada do Snark (Valer, 2012). O termo se entranhou na língua inglesa — o dicionário Oxford online registra snark como um animal imaginário, termo usado em geral para descrever uma tarefa ou objetivo difícil ou impossível de ser conseguido.

O lado nonsense de A caça ao Snark é mais desenvolvido nas situações do que na própria linguagem. Ao longo de oito seções, ou cantos, narra a expedição de uma tripulação curiosa — o Mensageiro, o Padeiro, o Sapateiro, o Advogado, o Chapeleiro, o Açougueiro, o Juiz de Bilhar, o Corretor, o Banqueiro e o Castor — em busca de um animal misterioso, o Snark. 

O bicho jamais foi visto por eles, mas há, conta o Mensageiro, cinco marcas inconfundíveis para identificá-lo. Uma delas é a mania de acordar tarde, atrasando as refeições. Outra é “a lentidão em fazer graça”, combinado com o fato de fazer cara séria quando conta uma piada. Mas a principal é a ambição, pois distingue o Snark comum, que não causa “grande estrago”, do Bujum. E quem encontra um Bujum tem final triste: irá “suave e subitamente desaparecer”. 

O Snark não é a única criatura estranha na narrativa: há encontros com o pássaro Jubjub e o feroz Arrebabanda, ambos também presentes em “Jabberwocky”. O texto não dá muitas pistas sobre as características físicas dos bichos, e a interpretação fica por conta das ilustrações de Riddell, responsável pelos cartuns do jornal The Observer e autor e ilustrador de livros infantis, como os das séries Otolina e A garota Gotic, publicados também pela Galera Junior.

Assim como os livros de Alice, A caça ao Snark, em meio a episódios surreais, tem elementos melancólicos — o ilustrador da edição original, Henry Holiday, disse que pensou no poema como “uma tragédia”. Um drama pessoal, aliás, é apontado por alguns estudiosos como o episódio que motivou Carroll a escrever o livro: a morte do tio, um inspetor em hospícios que foi atacado por um paciente violento. 

Em The Invisible Plague: The Rise of Mental Illness from 1750 to the Present (Rutgers University Press, 2001), Edwin Fuller Torrey e Judy Miller argumentam que o episódio narrado pelo Padeiro, em que seu tio — que desapareceu após encontrar um Bujum — o aconselha a caçar o Snark com dedais e sabão, é um indicativo dessa motivação de Carroll: checar os itens de higiene pessoal dos pacientes estava entre as tarefas dos inspetores nos manicômios de então.

Não por acaso, a tradução brasileira mais conhecida e celebrada de “Jabberwocky”, poema coalhado de palavras-valise, é do poeta Augusto de Campos, “Jaguadarte”, publicada em O anticrítico, de 1986. A tradução ganhou edição própria em 2014, pela Nhambiquara, com ilustrações de Rita Vidal e um audiolivro em CD.

A caça ao Snark é descrito por Carroll em seu prefácio como “de certa forma, ligado ao universo de ‘Jaguadarte’” — tanto que algumas palavras-valise criadas pelo autor neste último também são usadas no primeiro. No entanto, a linguagem é bem menos carregada de neologismos que a de “Jaguadarte”, obra muito mais curta. Os dois poemas tratam de criaturas misteriosas, cujas características não são esmiuçadas, deixando essa tarefa à imaginação do autor.

Grosso modo, a literatura nonsense se caracteriza pelo desafio às normas de razão e lógica e da própria linguagem

A nova edição de A caça ao Snark também está, de certa forma, ligada à tradução de Campos: além de usar “Jaguadarte” para “Jabberwocky”, a poeta carioca Bruna Beber usa as soluções do concretista para as palavras-valise citadas no prefácio que não aparecem em A caça ao Snark: “briluz” e “pintalouvas”. As semelhanças, no entanto, terminam aí: as palavras de “Jaguadarte” repetidas no corpo do livro são recriadas por Beber, como “ferrenhosas” (no original, frumious), “berrassovispirrou” (outgrabe) e “bufáspero” (uffish). A poeta — autora do infantil Zebrosinha, também editado pela Galera Junior, e tradutora de Dr. Seuss, O Lórax e O Gatola da Cartola, ambos da Companhia das Letrinhas — maneja com competência a transposição do esquema de rimas para o português.

Apesar do grande número de fãs adultos de Carroll, a edição, voltada para o público infantil, não traz material de apoio. Há pouco sobre o autor ou a obra além de uma introdução breve de Riddell e do próprio prefácio de Carroll. Na orelha, Augusto dos Anjos é creditado em vez de Augusto de Campos como tradutor do autor no Brasil — questionada sobre o erro, a Galera Junior afirma que será corrigido na próxima edição.

A grande reinterpretação desta edição, no entanto, fica por conta de Riddell. O Padeiro, que por fim encontra a criatura, sofre uma transformação na ilustração — mas convém não estragar a surpresa.  

Especial Infantojuvenil: oferecimento Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Marina Della Valle

Jornalista e tradutora, é doutora em Letras pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.