Ciências Sociais, Crítica Literária, Literatura,

Vidas (e obras) paralelas

Sergio Miceli prossegue sua investigação sobre as vanguardas argentinas à sombra de Borges e os modernistas brasileiros

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

A literatura dos anos 1920 e 30 nunca deixou de nos interessar. Sua vitalidade não pode ser medida pela quantidade de citações acadêmicas, que, aliás, são incontáveis. Recentemente, reli Macunaíma e (mais uma vez!) fui arrastada pelo turbilhão disparatado de um livro que foi glosado, comentado, museificado e desmuseificado ao longo de décadas. As vanguardas argentinas e brasileiras não são espectros esmaecidos.

É verdade que a grande massa do que foi então publicado caiu num esquecimento que nos alerta sobre a vaidade de pensar que “o escrito permanece”. Quem frequenta os arquivos de jornais e revistas conhece a melancólica fragilidade de poemas e artigos que, em sua época, foram considerados importantes. Contudo, sem esses arquivos é impossível contar a história literária, a história do jornalismo, do teatro. É necessário devolver-lhes a vibração que irradiavam quando eram tempo presente. Conheço a experiência frustrante de não encontrar o que se busca. E também conheço o momento em que se encontra o artigo, o conto ou o poema que confirmam uma hipótese ou obrigam a alterá-la.

Sergio Miceli frequentou bibliotecas, arquivos de jornais, coleções de revistas culturais e publicações de grande público para escrever este livro, que reúne um ensaio comparativo sobre as vanguardas brasileira e argentina dos anos 1920; um original estudo sobre a revista Sur, fundada em Buenos Aires em 1931, cujos números ele examina até o final da Segunda Guerra Mundial; e “vidas paralelas” da poeta Alfonsina Storni e do narrador Horacio Quiroga. A perspectiva comparativa sobre as vanguardas dos anos 1920 é um tema “clássico”. Jorge Schwartz já se deteve no caso de Oswald de Andrade e Oliverio Girondo, num livro de 1983 que recebeu o título simples e pioneiro de Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20. Vejamos, então, o que Sonhos nos oferece de novo.

Miceli sustenta a tese de que na Argentina existiu um mecenato privado que ‘contrastava com o centralismo da intervenção estatal no caso brasileiro’

Miceli trabalha com instrumentos tomados da sociologia dos intelectuais e do campo literário, procurando a dimensão social nos fatos da cultura. Propõe-se a estabelecer “um encadeamento esclarecedor entre constrições sociais, mapeamento de posições no interior do campo intelectual em constituição e as obras derivadas desse contexto”. Tal estrutura complexa de condições é sobredeterminada pelo caráter periférico das sociedades latino-americanas. As elites são elites periféricas; os públicos são periféricos; a mídia, também.

Uma tese forte sustenta seu argumento: na Argentina existiu um mecenato privado, que contrastava “com o centralismo da intervenção estatal no caso brasileiro”. 

Nas décadas de 1920 e 30, diante da ausência do Estado no apoio a escritores, o mecenato privado desempenhou uma função decisiva. Evidentemente, Miceli não ignora que este, exercido por jornais e outros atores do mercado, se realizava numa área metropolitana onde o público do novo jornalismo e os compradores de livros das novas editoras haviam adquirido as destrezas necessárias para se exercitar como leitores por meio de uma agência exclusivamente estatal: a escola pública e gratuita.

O jornalismo e, sobretudo, o novo jornalismo dos periódicos populares recebem a atenção que merecem, já que foram fundamentais na produção dos meios de vida para os escritores, alguns deles provenientes das elites empobrecidas, outros das levas de imigrantes “recém-chegados”. Os jornais Crítica e El Mundo fazem um jornalismo diferente do dos “senhores”, por seu formato, pelo espaço que neles se dá à crônica da vida cotidiana, às notícias policiais, aos crimes, oferecidos como campos de prova de novas escritas. Ali trabalham os irmãos González Tuñón e Roberto Arlt, para citar apenas os nomes mais destacados. Miceli assinala que o escritor brasileiro, ao contrário, “necessitava do apadrinhamento de algum líder ou prócer político, detentor do acesso privilegiado a recursos governamentais, verbas, cargos, comissões…”. 

As vanguardas argentina e brasileira também se diferenciam por outros traços que revelam sua importância quando Miceli os ordena comparativamente. As vanguardas argentinas mantinham relações de conflito, polêmica ou associação com as espanholas. Já as brasileiras não tiveram relações estreitas com o modernismo português, nem cultivaram elos, que os argentinos valorizavam, com outros latino-americanos eminentes. Um exemplo bem concreto: o mexicano Alfonso Reyes, intelectual e embaixador, deixou uma vasta esteira de amigos em Buenos Aires. Mas, aponta ironicamente Miceli, o único rastro da breve temporada que Reyes passou no Brasil governado por Vargas foram os retratos que encomendou a Portinari.

Os argentinos parecem mais internacionalistas que os brasileiros. E, no entanto, assumiram como questão central a defesa do espanhol em sua versão rio-platense. Tanto Buenos Aires como São Paulo receberam forte imigração no final do século 19 e início do 20. Mas em Buenos Aires parece ter pesado mais a presença de escritores de origem imigrante, como o poeta e jornalista Raúl González Tuñón e o ficcionista e também jornalista Roberto Arlt. 

O campo literário povoava-se de gente estranha às elites tradicionais, às quais, por outro lado, não pertenciam escritores importantes como Evar Méndez, diretor da revista Martín Fierro, ou o poeta Leopoldo Marechal, que, no final dos anos 1940, publicou Adán Buenosayres, romance experimental e cômico, místico e intelectual, sobre a cena vanguardista dos anos 1920, que poderia ser lido como um complemento, não de todo ficcional, do livro de Miceli. Muitos de seus personagens integraram o campo literário estudado em Sonhos.

Não estou em condições de avaliar se a perspectiva sobre o Brasil apresentada neste primeiro ensaio é tão exata e bem documentada quanto a persuasiva descrição que oferece do campo literário argentino. Parece-me que, neste aspecto, Miceli se propõe a apresentar o caso argentino acrescentando pinceladas comparativas com o brasileiro. Como crítica de literatura argentina, não poderia senão esperar a versão simétrica: o caso brasileiro comparado com reflexões sobre o argentino. Miceli prova que a perspectiva social sobre o campo cultural, longe de perder os detalhes específicos, permite examiná-los através de enfoques que também a crítica literária começou a adotar nas últimas décadas (digamos, desde os cultural studies iniciados, muito ensaisticamente, por Richard Hoggart e Raymond Williams, até a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu).

Miceli situa a ‘Sur’ num campo em que eram frequentes as passagens de um lado a outro; nem fascista nem companheira de viagem da esquerda

O segundo ensaio do volume tem um título ao mesmo tempo valorativo e descritivo: “A inteligência estrangeirada de Sur”. Como se sabe, essa revista foi fundada por um dos membros mais eminentes da elite, Victoria Ocampo, incentivada, de vários modos, pelo americano Waldo Frank, por Ortega y Gasset e por uma rede de relações locais, que Miceli descreve com um grau de detalhe que atesta sua capacidade de pesquisador. Além disso, não se limita à revista (que foi importante para muitos escritores latino-americanos e europeus), mas traça o mapa das instituições que funcionavam em torno dela: “Sur logo se tornou o carro-chefe do establishment cultural e artístico sediado em Buenos Aires”. A revista foi alvo de longos debates na Argentina: era apenas uma publicação da elite social ou conseguira projetar-se no campo literário e ensaístico para além de seus limites de classe? Miceli conhece bem essa pergunta e as respostas que lhe foram dadas. Mas também conhece, como acabamos de ver, as particularidades do caso argentino, em que a existência de um mecenato local possibilitou a continuidade de iniciativas independentes do Estado. Avalia as bases materiais da Sur e, à contraluz, lê o peso do Estado no Brasil, como já fizera no primeiro ensaio, cuja argumentação se consolida neste segundo.

A política da Sur no campo intelectual não pode ser dissociada de sua independência financeira (possível graças à fortuna de Victoria Ocampo, então enorme, que décadas depois acabou quase totalmente investida na revista, como sugere uma carta dela a seu amigo Roger Caillois). O juízo de Miceli é contundente: em Sur — na diretora da revista e no grupo que recebeu esse nome — transparece um “emplastro de autoindulgência classista”. Sobejam exemplos nos escritos autobiográficos de Victoria Ocampo. Entre eles, Miceli escolhe sua visita a Ravel, episódio no qual lê a certeza de Ocampo quanto a seu pertencimento a uma alta burguesia internacional, modernista e refinada.

A importante contribuição do ensaio de Miceli é o ordenamento das batalhas ideológicas e políticas que envolveram a Sur num momento especialmente conturbado da internacional intelectual: desde a Guerra Civil Espanhola até a Segunda Guerra. Desde o conflito com a revista católica Criterio, que acusava a Sur de esquerdista, até a disputa por “grandes emblemas” do pensamento católico, como Jacques Maritain. A intrincada relação entre a Sur e os católicos da Criterio, então dirigida por um representante da direita com devaneios antissemitas, é uma batalha ideológica que merece a atenção que Miceli lhe dedica. Com inteligência, situa a Sur num campo em que eram frequentes as passagens de um lado ao outro. Investiga o mapa de seus colaboradores e encontra uma fórmula exata: Sur foi uma revista eclética, nem fascista nem, muito menos, companheira de estrada da esquerda.

Esses debates protagonizados por ideólogos e intelectuais ocorreram num mundo em transformação. Ao longo da década de 30, a importância que, com orgulho, a Argentina acreditava ter no Ocidente se debilitou: “A posição privilegiada da Argentina parecia insustentável”. Suas aspirações de independência na arena internacional já careciam do lastro anteriormente reconhecido por outros governos e países. Tulio Halperin Donghi, em La República imposible, apresenta as provas dessas mudanças. Um acordo sustentado entre as elites políticas e certas tendências nacionalistas conservaram o país no campo dos neutros praticamente até o final da Segunda Guerra Mundial.

Número sobre o Brasil

Nesse período crucial, a Sur dedicou um número ao Brasil (setembro de 1942). Vargas decidira abandonar a neutralidade e, na Conferência de Rio de Janeiro, anunciara o rompimento das relações com os países do Eixo. Embora Miceli, com justificada prudência, não se detenha nesse ponto, é bem provável que essa diferença entre a neutralidade argentina e o alinhamento brasileiro com os aliados tenha marcado os dois vizinhos muito mais do que os anos da guerra, decidindo os rumos distintos que um e outro seguiram no pós-guerra. A Sur, que apoiava com ardor a causa aliada, tornou-se, em 1942, “brasileirista”. 

Mais uma vez, como cumprindo uma sina, artistas e intelectuais argentinos permaneceram afastados do poder estatal (que condenavam por seu neutralismo e, depois, por seu peronismo), ao passo que, como aponta Miceli, no Brasil se desenhava uma “entente entre o governo Vargas e a nata de intelectuais e artistas bafejados pelo poder público”. A história que Miceli expõe em detalhes inclui uma breve consideração da ensaística do “ser nacional” sintetizada numa breve frase, conceitual e ao mesmo tempo descritiva: Sur “transmutava lutas sociais em dilemas de civilização”.

Alguns leitores notarão, talvez com espanto, que nessa história Borges não ocupa o lugar de personagem principal. Na perspectiva que Miceli adota para reconstruí-la, Borges, de fato, não foi protagonista. Se hoje ele parece ocupar todo o espaço dessas décadas, é antes um efeito de anacronismo que transpõe nossa valoração presente ao passado. Muitas páginas do ensaio são dedicadas a Borges, mas o que hoje garante a centralidade que lhe é reconhecida são apenas suas invenções literárias: as margens, o criollismo, a tradição gauchesca reciclada em seus próprios textos, sua leitura de gêneros populares, como o policial. Se o fio condutor da pesquisa fosse outro, talvez sua paisagem estética também fosse diferente.

No entanto, isso não é um problema. Não perdemos essas diferenças literárias e estéticas, porque o terceiro e último ensaio do livro consiste nas “vidas paralelas” de dois escritores que não pertenceram à constelação de Sur. Miceli não adota a já clássica oposição da crítica argentina entre Borges e Arlt (que hoje pode render pouco mais do que já rendeu), preferindo em vez disso relatar a biografia social e literária de Horacio Quiroga, narrador de contos perfeitos, e de Alfonsina Storni, a poeta das professorinhas, costureiras, moças suburbanas, recitadoras populares, balconistas, que trabalhou no horizonte cultural desse público e, passo a passo, avançou para formas esteticamente mais complexas. Quiroga e Storni assumiram riscos em relação às expectativas do seu público cativo. A despeito disso, ambos conservaram uma popularidade excepcional que também nos dá uma noção do tamanho do público leitor nas grandes cidades argentinas. 

Essas vidas paralelas, de um homem e uma mulher que foram companheiros e grandes amigos, terminam com o suicídio dos dois. Quiroga, doente de câncer, envenena-se, em 1937; Alfonsina mergulha no mar e morre entre as ondas, em 1938. Cumprindo até o fim com as obrigações de uma escritora profissional, enviou por correio ao La Nación seu poema “Voy a dormir”. Suicidou-se dois dias depois, o tempo exato para que o poema chegasse ao jornal e fosse publicado junto com o necrológio. 
Poderia se dizer que esse caso, com o qual Miceli fecha seu livro, é uma prova de que o escritor profissional já não era uma hipótese nem uma fantasia, e sim uma identidade. [Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina]

Quem escreveu esse texto

Beatriz Sarlo

Escritora e crítica literária, é autora de Modernidade periférica (Cosac Naify).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.