Literatura,

Uma distopia iminente

Celeste Ng explora um mundo fictício semelhante à realidade onde a xenofobia impõe leis e comportamentos

22mar2023 | Edição #68

A literatura está repleta de narrativas de um futuro próximo em que o governo é totalmente opressor, é proibido debater ideias e livros considerados perigosos são descartados. Tudo validado por parte significativa da sociedade, conformada com o autoritarismo e que aceita o racismo como regra. Esse é também o pano de fundo escolhido por Celeste Ng para a trama de Os corações perdidos, no qual a sinofobia — preconceito contra a China e os chineses — dita o modo de vida nos Estados Unidos.

A história acompanha Bird (apelido de Noah Gardner), garoto sino-americano de doze anos que vive com o pai, Ethan Gardner, um ex-linguista que trabalha em uma biblioteca universitária em Cambridge, Massachusetts. Descobrir o que motivou sua mãe, Margaret Miu, a abandoná-lo quando ele tinha nove anos é o que conduz a história de Bird — que não entende o que aconteceu, e o pai nem sequer fala do assunto.

Eventos que impulsionam o romance estão muito próximos de acontecimentos recentes

Na trama de Ng, os Estados Unidos estão vivendo sob a PACT — Lei de Preservação da Cultura e Tradições Norte-americanas —, e uma série de novas medidas impacta diretamente a vida dos Gardners. A lei que entrou em vigor durante uma intensa crise econômica se desdobra no desaparecimento de Miu, que tornou-se fugitiva depois de escrever um poema supostamente subversivo e ter seus livros banidos. 

Sob a nova legislação, qualquer pessoa asiático-americana, de origem chinesa ou não, vira sinônimo de ameaça para a ordem vigente. Crianças são separadas dos pais por conta de opiniões políticas, pessoas consideradas suspeitas somem sem qualquer explicação. Nesse contexto, Bird é orientado pelo pai a andar de cabeça baixa, não chamar atenção e não fazer perguntas, pois carrega os traços da mãe, agora vistos com desprezo e desconfiança nesse cenário onde os paralelos com a atualidade são muitos.

Em entrevistas, Celeste Ng tem defendido que Os corações perdidos não é necessariamente uma história distópica, ao menos não no molde tradicional, já que os eventos que impulsionam o romance estão muito próximos de acontecimentos recentes, como os casos de livros banidos de escolas nos Estados Unidos. Na Flórida, por exemplo, uma lei fez com que mais de 170 livros fossem retirados das escolas. A lista incluía exemplares de O olho mais azul, de Toni Morrison, O conto da Aia, de Margaret Atwood e dezenas de livros com temática LGBTQIA+ e sobre racismo.

Outro fato recente evocado no romance de Ng: com a explosão da pandemia de Covid-19, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump disseminou o estigma de que o coronavírus era um vírus chinês e reforçou estereótipos contra a população do país asiático. No Brasil, o governo Bolsonaro foi pelo mesmo caminho e culpou a China pelo seu fracasso na condução da pandemia.

Em Os corações perdidos a lei surge como uma resposta ao caos econômico que se deu no país cerca de quinze anos antes de Bird nascer. Uma crise devastadora, pior do que as anteriores, da qual a China é apontada como culpada, ainda que não haja explicação plausível para isso. O nacionalismo justifica uma suposta proteção aos valores norte-americanos como meio de evitar outra crise semelhante. Assim como em outros momentos da História, esse tipo de sentimento alimenta o ódio contra grupos sociais minorizados, refletido no romance:

Mas a PACT é mais do que uma lei. É uma promessa que fazemos uns aos outros: uma promessa de proteger nossos ideais e valores norte-americanos; uma promessa de que haverá consequências para aqueles que enfraquecerem nosso país com ideias antiamericanas.

Devido à responsabilização da China pela crise, cidadãos com fenótipo asiático começam a sofrer todo tipo de retaliação. Margaret estava em Nova York para estudar, tinha sonhos e gostava de escrever. Depois da PACT, ela perde o emprego e passa a ser perseguida, como todos os que têm o rosto parecido com o seu. A situação escalona. Protestos, acusações e agressões eclodem pelo país, num ambiente calcado na desconfiança. Quando Margaret conhece Ethan, ela muda de cidade e a vida parece tranquila novamente. Mas não por muito tempo.

O chamado à ação começa quando Bird recebe uma carta com um desenho misterioso. A vontade de reencontrar a mãe o leva a uma jornada que remete à de personagens da fantasia, com um vilão a ser enfrentado e um resgate a ser realizado. Mas ainda que salpique doses de fantasia no olhar de Bird para esse mundo duro, Ng finca os pés na realidade para tornar a história crível.

Fenômeno global

Como cidadã norte-americana descendente de chineses, Ng vivenciou diversas situações que atravessam suas tramas e aborda a necessidade de escancarar a sinofobia normalizada na cultura estadunidense — hoje um fenômeno global.

A autora deixa uma nota no fim do livro sobre os acontecimentos históricos e afirma não ter feito analogias diretas, embora confirme ter se inspirado em eventos reais, tanto do passado quanto do presente. Comenta, inclusive, que várias das situações imaginadas se tornaram realidade quando o romance foi concluído.

O livro foi escrito no auge da pandemia, em 2020, e pensamentos que pairavam no imaginário sobre o futuro da humanidade aparecem no texto. O preconceito contra asiáticos, a restrição de convívio social, pessoas isoladas em seus próprios núcleos e, portanto, retroalimentando as mesmas ideias. Sem abertura para o diálogo, com a arte e a educação sendo podadas. Mas, como em períodos ditatoriais, em Os corações perdidos os opositores do governo se organizam, se articulam e resistem.

Críticas a questões sociais tecidas a partir de dramas familiares tornaram-se assinatura de Ng. Em Tudo o que nunca contei e em Pequenos incêndios por toda parte ela levanta problemas singulares, íntimos, mas com potencial para a universalidade. Aqui não é muito diferente. Ela é mais categórica ao levantar as injustiças que o patriotismo pode alimentar, mas sua escrita segue sendo sobre pessoas, como elas se relacionam e o quanto elas cuidam umas das outras.

Quem escreveu esse texto

Kelly Ribeiro

É jornalista, radialista e produtora cultural.

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.