Literatura,

Todo sangue é negro

Romance histórico descreve a consciência atormentada de um soldado senegalês que perde seu amigo e se transforma em um matador voraz

01nov2020 | Edição #39 nov.2020

Levada ao limite na Primeira Guerra Mundial, a condição humana despenca sobre a história dos senegaleses Alfa Ndiaye e Mademba Diop — mais que soldados no mesmo front, amigos; mais que amigos, irmãos por eleição, selada na infância. 

Logo nas primeiras páginas de Irmão de alma acompanhamos o lamento de uma consciência atormentada. Alfa se sente um traidor por não ter sido capaz de dar fim à agonia de Mademba, ferido de morte após se lançar contra os alemães. O drama se transfigura por uma concepção de vida e morte que remonta às memórias compartilhadas e opera deslocamentos para outras dimensões de espaço e tempo, corpo e alma.

“Vocês, os chocolates da África Negra, são naturalmente os mais corajosos entre os corajosos. A França é grata e os admira.” Essa é uma das sentenças de morte proferidas pelo capitão Armand para a tropa colonial sob seu comando. As consequências desse falso enaltecimento em favor de uma carnificina calculada serão narradas pela voz de quem salta de dentro das trincheiras do colonizador — que, afinal, nunca está do lado daquele que explora, nem quando combatem lado a lado.

Ainda que a manipulação colonial seja histórica, nada nessa narrativa se reduz a acusações maniqueístas ou ao reparo. Todos os personagens são apresentados em suas particularidades humanas (ou desumanizadoras), rompendo qualquer generalização.

Conflitos internos e diferenças entre os dois irmãos de alma e de armas também têm seu quinhão de culpa na tragédia pessoal que se dá em meio à coletiva. 

O capitão Armand não é aliado dos soldados negros nem dos brancos, que resistem às suas ordens. Manipula a carne a seu dispor para satisfazer a boca imensa da guerra em nome dos interesses de seu país, ora estimulando a selvageria, ora condenando-a. E é nos lábios desse antagonista mais evidente que soa o comando que lançará Mademba à morte. 

Há, na confissão de Alfa, entretanto, a culpa por ter possivelmente despertado no amigo o desejo de demonstrar coragem e sair na frente, gritando na direção do inimigo. O gatilho teria sido um comentário jocoso sobre um símbolo sagrado de sua família, “um totem de dar risada”. 

Se a piada fora de contexto pode ter desencadeado a tragédia, também soma a ela outra versão: “O parentesco de zombaria substituiu a guerra, a vingança entre nossas duas famílias, entre nossos nomes de família. O parentesco de zombaria serve para lavar as velhas ofensas no riso, na chacota. […] Infelizmente falei de novo sobre seu orgulhoso totem ave na manhã de sua morte, pouco antes de o capitão Armand apitar o ataque”.

Soldado feiticeiro

O murmúrio daquele que não se enluta se desdobra no relato da conversão de Alfa, após a morte de Mademba, em matador voraz e metódico. Ele agora vasculha o que vai no pensamento das vítimas, que olham para ele cheias de preconceitos: “Ao observar os olhos azuis do inimigo, costumo ver o medo, costumo ver o medo e o pânico da morte, da selvageria, do estupro, da antropofagia. Vejo em seus olhos o que lhe disseram de mim e aquilo em que acreditou sem nunca ter me encontrado”. 

Alfa também busca o que vai dentro dos corpos, o que há de comum a todos: “Ele grita em um grande silêncio quando eu pego todo o seu lado de dentro do ventre e o coloco do lado de fora na chuva, no vento, na neve ou sob a luz da lua. Se neste momento os seus olhos azuis se fecham para sempre, então deito perto dele, viro o seu rosto para o meu e assisto um pouco ele morrer, depois o degolo, honestamente, humanamente. À noite, todos os sangues são negros”.

Entre reflexões sobre fé e estereótipos, a perda da razão e uma ética própria ao matar, Alfa constata que a única loucura aceita na loucura que é a guerra é a temporária: “Depois do apito do capitão sinalizando a retirada, a loucura é um tabu”. É tênue a linha que, na guerra, separa heróis e loucos.

A gana desenfreada por matar com certos requintes recorrentes passa a assustar os companheiros de front, negros e brancos, fazendo correr o rumor de que Alfa seja um soldado feiticeiro, capaz de devorar a alma dos inimigos, um dëmm, entidade-chave para algumas questões que até certo ponto soam abertas: se Alfa, ao contrário de Mademba, não fala a língua do colonizador, como é que entoa seus relatos nesse idioma? Vivo, como poderia traduzir as experiências que afirma que os sobreviventes não saberão?

Ou ainda: se, ao contrário de sua alma, o corpo de Alfa parece fechado, por onde se dá o reconhecimento de que só se pode contar a sua história a partir das cicatrizes? 

A observação daqueles que voltaram da Primeira Guerra Mundial abriu caminho para a elaboração de dois conceitos europeus: a perda da experiência, por Walter Benjamin, e o trauma, por Sigmund Freud. Diop traz uma contribuição africana para esse debate. No lugar de uma amputação de relatos possíveis infligida pelo trauma da guerra, é a própria ferida aberta que fará com que mais de uma voz seja ouvida no livro.

Duas das três epígrafes anunciam uma fusão de dois. “Nós nos abraçávamos por nossos nomes”, de “Da amizade”, de Michel de Montaigne, ensaio que contém a célebre síntese sobre sua relação com La Boétie: “Porque era ele, porque era eu”. A outra vem do senegalês Cheikh Hamidou Kane: “Sou duas vozes simultâneas. Uma se afasta e a outra cresce”.

O “eu”, assim minúsculo, é a primeira palavra a despontar no romance: “—… eu sei, entendi, eu não deveria”. O diálogo já está iniciado e não se mostra quem seria o interlocutor. 

Como em uma confissão, há uma escuta e tradução, feita pela verdade de um Deus que “está sempre atrasado em relação a nós”. “É isso a guerra: é quando Deus se atrasa na música dos homens, quando não consegue desemaranhar as linhas de tantos destinos.” 

Em seguida, o narrador em primeira pessoa se identifica. “Eu, Alfa Ndiaye, filho do velho homem, entendi, eu não deveria.” A afirmação soa como um eco da anterior, mas insiste no reconhecimento de uma individualidade pelo nome próprio.

O laço profundo entre senegaleses tão distintos entre si em tantos aspectos chama a atenção para uma diversidade de que a vasta bibliografia sobre o conflito mundial nunca deu conta por ter sido escrita até por quem foi. E não cabe aqui juízo moral.

Nascido em Paris, David Diop tem o mesmo sobrenome senegalês de Mademba, único personagem entre os dois protagonistas que tinha o desejo de ser reconhecido como cidadão pela França ao lutar sob sua bandeira e aquele que domina o idioma do país. Criado no Senegal, hoje o escritor é professor na Universidade de Pau e Pays de l’Adour, onde pesquisa representações europeias da África. 
Nesse trânsito cruzado também presente na vida do autor, Irmão de alma insere-se na tradição do romance histórico de guerra, sim, mas de dentro dela a descoloniza. 

Quem escreveu esse texto

Luciana Araujo Marques

É doutoranda em teoria e história literária na Unicamp.

Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.