Literatura,

Questão de método

Para especialista brasileira em serial killers, o livro que deu origem à série “Mindhunter” é a bíblia dos profilers, peritos em traçar perfis criminais

15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

O livro Mindhunter: o primeiro caçador de serial killers americano, lançado em 1996 nos Estados Unidos, chega ao Brasil com mais de vinte anos de atraso, impulsionado pela série da Netflix. O autor é, ninguém menos, que o ex-agente John Douglas, uma lenda do FBI (Federal Bureau of Investigation), em parceria com o escritor e roteirista Mark Olshaker.

No foco de Mindhunter estão a história pessoal e a trajetória profissional de Douglas, que ficou cara a cara com dezenas de serial killers americanos, cunhou o termo e traçou o perfil dos autores dos mais famosos crimes em série, elaborando um método investigativo utilizado até hoje, conhecido como análise de perfil criminal. A pesquisa deu origem, em 1980, à Unidade de Apoio Investigativo do FBI.

Conforme conta no livro, é estudando registros de crimes reais que se aprende a criar métodos e ações para atuar em casos futuros. Entender o processo de pensamento criminoso, que Douglas acessa por meio de entrevistas, é fundamental para estabelecer o método de ação. Em suas palavras, “se quiser compreender um artista, olhe para a obra dele”. Que tipo de pessoa poderia ter cometido um crime assim? Eis a pergunta essencial que Mindhunter tenta responder.

Com a publicação do livro, começamos a ter acesso a uma pequena biblioteca de estudos de perfis criminais, que abriga outra obra fundamental dos mesmos autores: The Anatomy of Motive (1999). Com vinte anos de atraso, abre-se para centenas de pessoas a oportunidade de seguir uma carreira que por aqui ainda não tem educação formal, apenas autodidata — a dos profilers.

Consumidora voraz de literatura policial, de suspense ou de mistério, nos idos de 1998, comecei a pesquisa para escrever meu primeiro livro. Utilizei, na medida do possível, as técnicas elaboradas por esses estudos do comportamento norte-americana para desenvolver, no Brasil, uma metodologia que detectasse padrões de comportamento criminoso e pudesse compor perfis criminais, aumentando, assim, o índice de solução de homicídios e diminuindo o número de vítimas de assassinos raros e únicos, que causam estrago social pela crueldade de seus atos e pelo alcance de suas ações.

Colaboração

Acabei concordando com a explicação de Douglas sobre por que esses serial killers aceitam colaborar. Alguns, porque se sentem incomodados pelos crimes que cometeram, e cooperar com um estudo psicológico os redime e traz compreensão de si mesmos. Outros, tão aficionados por temas policiais e forenses, se sentem, dessa forma, fazendo parte do jogo legítimo.

É o caso de Francisco Costa Rocha, o Chico Picadinho, assassino de duas prostitutas. Bastante vaidoso, se orgulhou em ser objeto de estudo, colaborador da ciência e não um mero criminoso. A vida na prisão também é tediosa e, após algum tempo, mesmo os mais notórios se sentem ignorados e esquecidos. Há uma pequena parcela que deseja reviver suas fantasias assassinas em detalhes, como Marcelo Costa de Andrade, o Vampiro de Niterói, que matou e bebeu o sangue de catorze crianças para ficar jovem e purificado. Pena só sabermos disso após entrevistá-los.

Ao seguir os passos de Douglas, entendi a diferença explicada pelo assassino Ed Kemper entre esquartejamento operacional e ritual. Foi assim que pude discernir entre os casos Farah e Matsunaga, que cometeram essa brutalidade apenas por necessidade técnica (“operacional”), e Picadinho, que mistura nesse ato sua necessidade psicológica usando o esquartejamento como fetiche (“ritual”).

A partir de 2004, participei de várias investigações, colaborando com a polícia e analisando assassinos com o objetivo de construir perfis para o uso do Ministério Público, da Magistratura, da defesa de inocentes atingidos por crimes de uma série já identificada como obra de um serial killer.

A história de Jerry Brudos — serial killer do tipo organizado, com fetiche por sapatos e roupas femininos, invadia a casa das vítimas, além de submetê-las a obsessivas sessões de fotos — foi essencial para que eu entendesse Luiz Vieira Amaro, caminhoneiro de Araranguá (SC), e sua patológica relação com a esposa (mantinha em casa um quarto totalmente inacessível a ela). Ele foi absolvido do primeiro crime que cometeu, mas sua assinatura — mutilações na vítima e em si mesmo — era indiscutível, e foi fundamental condená-lo. Hoje, cumpre pena de quinze anos em regime fechado por seu último assassinato.

Mindhunter descreve também o perfil mais comum de matadores de idosas — jovens, inseguros e inexperientes, sem amigos ou lugares onde se refugiar —, leitura e aprendizado que me fizeram ter tantas dúvidas sobre a culpabilidade de André Luiz Cassimiro, o Estrangulador de Juiz de Fora, preso em 1996 pelo assassinato de cinco mulheres. Os crimes eram brutais: vítimas violentadas e estranguladas com fios de eletrodomésticos. Cassimiro não tem o perfil desse tipo de assassino e eu, com certeza, o absolveria, in dubio pro reo.

A polícia de Contagem (MG) também foi beneficiada: os casos de David Carpenter e Marcos Antunes Trigueiro, Maníaco de Contagem, tinham correlações. Carpenter era patologicamente gago e, Trigueiro, patologicamente tímido, condições que os levavam a fazer ataques-surpresa, mesmo em lugares ermos.

O livro Mindhunter ajuda a divulgar para o grande público a análise de perfil criminal, a ciência de “caçar serial killers” e assassinos extremos desenvolvida por Douglas. Não acredito que apenas o exame minucioso de dados solucione crimes, mas é certo que, quando entro em casos complexos, a mera coleta e articulação da vasta gama de dados necessária para elaborar o perfil implica uma comunicação que nos casos ordinários não acontece. Policiais militares e civis, peritos, médicos-legistas, cientistas, psicólogos e psiquiatras trocam informações, talvez pela primeira vez, aumentado a probabilidade de solução.

Douglas escreveu: “Se tivéssemos que seguir as diretrizes para entrevistas em prática atualmente, talvez não conseguíssemos pegá-lo de surpresa como pegamos”. A burocratização das penitenciárias brasileiras e o risco que as facções criminosas representam torna quase impossível a realização de entrevistas desse tipo.

Ele tem como mérito adicional não explorar explicitamente a crueldade dos assassinos. Privilegia a questão psicológica e comportamental dessa espécie “intra-humana”. Apesar do clichê de que o livro é sempre melhor que o “filme”, use um para estudar com profundidade e o outro para se distrair nas horas de lazer.

Quem escreveu esse texto

Ilana Casoy

É autora de Arquivos serial killers: Louco ou cruel e Made in Brazil (Darkside).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.