Literatura,

Quanto tempo dura um trauma

Elif Shafak questiona a utilidade do sofrimento em romance intimamente político sobre a divisão do Chipre

19abr2023 | Edição #69

Algumas das últimas palavras que o rato de biblioteca comeu compunham uma frase de Ovídio que ele não vai esquecer: “Algum dia esse sofrimento lhe será útil”. Teria vivido ali para sempre, a mastigar clássicos, mas a biblioteca fechou para obras e o rato teve de encontrar outro lugar e fê-lo junto de uma figueira, testemunha privilegiada de uma história trágica de divisão de um país, de uma ilha, “na encruzilhada de três continentes — Europa, África e Ásia — e do Levante, aquela região vasta e impenetrável que desapareceu por completo dos mapas atuais”.

Não estamos diante de uma fábula, mas de um romance que humaniza a natureza de modo a torná-la cúmplice do drama de dois povos e, sobretudo, de um casal que dá corpo à história recente do Chipre. Originalmente publicado em 2021, o livro chega ao Brasil com o título A ilha das árvores perdidas e sua autora é a escritora, ensaísta e activista Elif Shafak, um dos nomes maiores da actual literatura turca, a par com o Nobel Orhan Pamuk.

O livro reúne características da autora: os efeitos de regimes totalitários, da opressão, da violência

Estamos diante de um livro que reúne muitas das características da escrita de Shafak — os efeitos de regimes totalitários, da opressão, da censura, da violência no quotidiano narrados com recursos técnicos da tradição oral, da mitologia, e com uma ideia de fantasia enquanto modo de explorar e de indagar uma qualquer verdade que ajude a um entendimento sobre o presente. São livros com uma conotação fortemente política que a tornaram “inimiga” do regime turco liderado há dezoito anos por Recep Tayyip Erdoğan. Em 2005, na sequência da publicação de A bastarda de Istambul, onde fala do conflito turco-arménio de 1920 numa perspectiva feminina, Shafak foi alvo de um processo que quase a levou à prisão. Desde essa altura, vive em Londres e escreve em turco e em inglês-. “É possível sonhar em mais do que uma língua. Recuso categorias nacionais”, disse numa entrevista ao jornal português Público — onde continua a ser uma das vozes mais ouvidas contra os abusos cometidos pelo governo de seu país e activamente empenhada num trabalho em defesa dos direitos humanos, sobretudo da liberdade de expressão. Afirmando no entanto que a sua principal preocupação enquanto escritora é com a literatura e não com a política, define-se desta forma:

Sou uma contadora de histórias que privilegia a imaginação. Contudo, quando se é uma escritora turca não se tem a possibilidade de não se ser política. Talvez seja o mesmo com um escritor do Paquistão, do Egipto ou da Nigéria, de sítios que não têm uma democracia madura. Se nos interessamos pelas pessoas, se nos preocupamos com a justiça, com o que está a acontecer não podemos dizer que não nos preocupamos com política. A política está em todo o lado. Está nas nossas cozinhas, nas nossas casas, nos nossos quartos. Onde quer que haja relações de poder há política.

Nessa conversa, Shafak acusava ainda o actual regime turco de ter “acentuado a censura” e com isso estar a “matar a criatividade, a pôr em causa a democracia, a hipotecar uma sociedade”. Disse isso na entrevista em 2015 ao Público, justamente a propósito de A bastarda de Istambul, o seu livro mais premiado, mais traduzido, aquele que lhe conferiu uma voz com audiência mundial.

Pontes

Em A ilha das árvores perdidas, a autora, nascida em Estrasburgo em 1971, filha de pais turcos, volta a olhar o passado, mas com um pé no presente muito próximo para narrar outra atrocidade: a invasão turca do Chipre em 1974 que aumentou a tensão entre as comunidades greco-cipriota e turco-cipriota na ilha. A ocupação fez muitas vítimas e milhares de refugiados. Entre eles, os protagonistas deste romance que vai buscar uma epígrafe a Macbeth, de Shakespeare: “Haverá sangue, dizem eles. Sangue chama mais sangue. Sabe-se de pedras que se movem e de árvores que falam”.

E a primeira voz que se escuta é a de uma figueira natural da “única capital dividida do mundo”: Nicósia. Fala de sombras, de murmúrios.

Sussurros de desconfiança e conspiração se alastravam na escuridão. Pois essa ilha estava dividida em duas partes: norte e sul. Uma língua diferente, uma escrita diferente, uma memória diferente predominavam em cada uma; quando os ilhéus rezavam, raramente era para o mesmo deus.

A figueira fica no quintal de um bar, ironicamente chamado de Taberna da Figueira Feliz. Um pouco à semelhança do bar de A bastarda de Istambul — o café Kundera — também este é um local de encontros e conversas que seriam difíceis de acontecer noutros lugares. Dirigido por um turco e por um grego, guarda segredos que vão alimentando as raízes da figueira. É lá que Defne e Kostas se encontram clandestinamente. Ela, com dezoito anos, muçulmana, pertencente à minoria turca; ele, 17, cristão, da maioria grega. Apaixonam-se, fazem amor e dão início a uma história marcada pela tragédia da cisão dos amantes e, mais tarde, o trauma da dor, episódios que Shafak tece, intercalando tempos, geografias, diferentes referências culturais.

Da Nicósia da década de 70 a Londres de 2010, da viagem, primeiro de Kostas, depois sua e de Defne com um tranco da figueira que transplantaram para o jardim da sua casa em Inglaterra, o nascimento de Ada — palavra que em turco significa ilha — a quem as suas origens são escondidas o máximo possível até lhe acontecer a visita de uma tia, Meryem, num momento de particular instabilidade. Ada e Meryam constituem a ponte controversa entre passado e futuro, com muita da tensão entre ambas a decorrer na cozinha, o tal espaço intimamente político na literatura de Shafak.

O primeiro dia de Meryam na casa de Londres foi uma espécie de revolução cultural para Ada.

Sua tia havia preparado o café da manhã — ou melhor, um banquete. Queijo halloumi grelhado com za’tar, queijo feta assado com mel, halva de gergelim, tomates recheados, azeitonas verdes com erva doce, pãezinhos com pasta de azeitona preta, pimentão frito, linguiça picante, borek de espinafre, palitos de massa folhada com queijo, melaço de romã com tahine, geleia de marmelo e uma grande panela de ovos pochê com iogurte de alho, tudo cuidadosamente arrumado sobre a mesa.

Gerações

Shafak conhece a importância destes espaços tradicionalmente de domínio feminino. Ela cresceu com a avó na Turquia depois da separação dos pais — era muito jovem, e a mãe completava os estudos de diplomacia. O lugar reservado à comida é o lugar de rituais de contenda e celebração, os de silêncios mais marcados e de pequenas negociações. Neste livro isso cumpre-se mais uma vez, no Chipre de 1970 ou na Londres de 2000. Sempre sob a observância da figueira, em Londres do tranco que virou árvore, todos os anos soterrada para se proteger do frio do inverno. Shafak viu o ritual de proteger uma espécie mediterrânica num clima agreste pela primeira vez quando dava aulas no Michigan.

“Os Invernos eram muito frios, e lembro-me de conhecer famílias ítalo-americanas que enterravam as suas figueiras se os invernos fossem particularmente rigorosos”, disse Shafak numa entrevista à rede de rádio americana npr quando falava do romance. Desde então quis levar essa história para um livro. Levou anos até se concretizar, e os momentos da trama com a figueira são os mais arriscados, aqueles onde muitas vezes perde o pé, caindo num excesso de humanização da árvore, mas também lhe valem alguns dos instantes mais belos, sobretudo quando a figueira lhe permite convocar a natureza para a história.

Outro dos riscos deste livro seria o de derrapar para um dos lados da contenda ao falar de um país dividido. A divisão está lá, mas enquanto trauma para os dois povos e o modo como esse trauma pode viajar e se transformar a cada geração. Leem-se frases como estas: “O caminho de um trauma transmitido entre gerações é aleatório”, ou “Às vezes o trauma salta uma geração inteira e redobra sobre a seguinte”, ou ainda a interrogação “Será que cada geração começava inevitavelmente onde a anterior havia desistido, absorvendo todas as decepções e sonhos realizados?”.

A figueira sobrevive às gerações, assiste às mudanças, aos dramas, num contexto alargado

Defne, antropóloga, anos a lidar com a procura de desaparecidos durante os conflitos, tinha uma teoria, a de que a segunda geração “havia optado por suprimir o passado, tanto quanto o que não sabiam dele. A terceira geração, por outro lado, estava ansiosa para escavar e desenterrar silêncios”. E concluía com uma estranheza, a de que “em famílias marcadas por guerras, por deslocamentos forçados e atos de brutalidade, fossem os mais jovens que parecessem guardar as recordações mais antigas”.

A figueira sobrevive a todas essas gerações, assiste às mudanças, às transformações sociais, aos dramas familiares. Sua história tem esse contexto alargado; quando ela fala, sua voz é a de um ser ancestral. Ela está em Londres quando a ouvimos:

Nasci e cresci em Nicósia, muito tempo atrás. Aqueles que me conheciam naquela época não podiam deixar de abrir um sorriso ao me ver, com um brilho terno nos olhos. Eu era estimada e amada a tal ponto que deram o meu nome a uma taberna, e que taberna era aquela, a melhor em um raio de muitos quilômetros! A placa de latão sobre a porta de entrada dizia: a figueira feliz.

Neste romance, o 19º livro de Shafak e o primeiro depois da nomeação para o Booker Prize em 2019 com 10 Minutes 38 Seconds in This Strange World, a escritora não atingiu um dos seus pontos mais altos, mas a fasquia literária continua alta. Era um livro que queria escrever havia muito tempo, o de mais uma cisão, o de pensar o trauma a partir das várias gerações que o vivem, o de discutir conceitos como o de fronteira, o de lidar com o vazio dos que desaparecem, o de discutir a identidade. Tudo isso encontramos aqui. E está na observação e na pergunta que a escritora deu em muitas das entrevistas que deu a propósito de A ilha. Nelas, chamava atenção para a dificuldade em lidar com um assunto complexo e que mexe com tantas emoções. E deixava a interrogação:

Como contar a história de uma terra que foi dividida com uma fronteira, destruída por conflitos étnicos e anos e anos de violência e de nacionalismos e religiões concorrentes, como se conta essa história sem cair na armadilha do nacionalismo ou do tribalismo?

Ela fê-lo assim e nós podemos ir no balanço dela, com emoção, com dor. Como na boa literatura.

Quem escreveu esse texto

Isabel Lucas

Jornalista e crítica literária portuguesa, escreveu Viagem ao país do futuro (Cepe).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.