A escritora María Ospina Pizano (Divulgação)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura,

Perto da alma selvagem

Ao relacionar deslocamentos de animais aos de refugiados e imigrantes, autora colombiana celebra a resistência à submissão

13maio2025

Só um pouco aqui, romance da colombiana María Ospina Pizano lançado pela Instante com tradução de Silvia Massimini Felix, convida o leitor a habitar territórios simultaneamente pungentes e luxuriantes, tão íntimos quanto desconhecidos — este mundo e o tempo de vida que compartilhamos com os animais. Do fundo revolvido da terra, onde uma larva se contorce, à sensação do vento batendo no peito de um pássaro peregrino, a autora conduz a narrativa para miradas pouco usuais.

O título, inspirado em um poema de Nezahualcoyótl, filósofo e poeta do povo mesoamericano acolhua, revela a força e a densidade que aquilo que é transitório pode ter. Se o poema diz “Ainda que seja de jade se quebra,/ Ainda que seja de ouro se rompe,/ Ainda que plumagem de quetzal se desgarra./ Não para sempre na terra: só um pouco aqui”, o romance de Pizano se volta para o que está na base da relação, e das fraturas, entre os humanos e os animais não humanos. Se nada é habitado definitivamente, este planeta é uma breve e frágil morada para todos.

Cada uma das seis partes da narrativa (mesmo a última, que se resume a uma página) pode ser lida como um universo ficcional em si, ao mesmo tempo que as histórias de cada ser e até das paisagens, sejam elas naturais, urbanas ou rurais, estão conectadas ao mesmo fio condutor. Trata-se de uma história política, da grande política das conexões, seja aquela que relaciona os efeitos do capitaloceno sobre a mínima vida, seja a das articulações que regem as aproximações dos seres.

Não são tão distantes os pássaros se estilhaçando em prédios e os manifestantes sob ataque da polícia

Em Só um pouco aqui acompanhamos ciclos de vida e morte, e tudo o que cabe entre essas duas fatias, sob a perspectiva de Kati e Mona, duas cachorras abrigadas em um centro de adoção; de uma saíra escarlate às voltas com um processo migratório acidentado; de uma besoura que se extravia de seu habitat, desterrada junto a um maço de acelgas; e de uma porco-espinho bebê resgatada de uma orfandade traumática por uma mulher que a alimenta com leite humano. Mas não só. 

Se os humanos não estão em primeiro plano, seus afetos e afecções perpassam toda a história, reverberando a ideia de que nada está separado e de que, para o bem ou para o mal, somos todos um.Nesse sentido, a solidão e o desamparo dos animais refletem o mundo humano, seu micro e macrocosmos, sua ebulição. Não por acaso, a autora utiliza muitas vezes um léxico não usual para definir a errância deles no planeta: refugiados, desenraizados, imigrantes.

Não são tão distantes a cachorra Kati e Luís, seu primeiro tutor, um catador de lixo que sobrevive precariamente em Bogotá; do mesmo modo o pequeno besouro arrancado do conforto da terra e a mulher que intui que seus antepassados são os mesmos indígenas que, preferindo a morte à escravização imposta pelos colonizadores espanhóis, têm seus túmulos saqueados por modernos caçadores de tesouros; ou mesmo os pássaros em revoada se estilhaçando contra prédios espelhados e os manifestantes sob severo ataque da polícia.

Vidas soberanas

Os modos que humanos e animais se encontram e que colidem suas formas de estar no mundo bem refletem aquilo que Maria Esther Maciel diz em Animalidades: zooliteratura e os limites do humano (Instante, 2023): “Subtraídos de sua animalidade por meio dessa convivência forçada, os bichos sofrem um desvio de sua existência selvagem e são obrigados a assumir uma vida que não é propriamente a deles”.

Assim, essa é uma história de abandonos, perda, arrancamentos, amor e desamor, encontros e desencontros. A história de um mundo perturbado, no qual os vínculos entre os que vivem (aqueles que têm alma, anima, não por acaso raiz etimológica da palavra animal) se dão sob constante ameaça. Mas é também um cântico que celebra a soberania da alma selvagem, aquela que resiste, em seu miolo, tenazmente, à domesticação e à submissão. Aquela que não obedece aos limites impostos por fronteiras vigiadas, centros de detenção de imigrantes, carimbos de acesso que consideram o movimento pelo mundo um privilégio para escolhidos.

São exemplares os arcos da cachorra Kati e da saíra escarlate. À medida que Kati vai sendo arrancada de vidas que tem como suas, perde não apenas a segurança do que lhe é habitual, mas também os nomes pelos quais é chamada, ganhando novas identificações, sem, no entanto, perder-se de si mesma, de um nome que lhe é próprio, original, que lhe dá se não uma identidade, uma “cachorridade”. Se a saíra vermelha obedece à determinação ancestral e biológica de sua espécie ao se deslocar milhares de quilômetros, há também na construção da personagem uma adesão orgânica e resiliente à liberdade.

Em um dos momentos mais líricos e poderosos do romance, temos que:

Por céus serenos, a saíra sai um par de noites depois com um esvoaçar que é rebelião contra os centros. Sua leveza mascara esforço e compulsão […]. Atravessa subúrbios onde as árvores competem com mastros e bandeiras que anunciam margens que ela não respeita.

Em um período histórico em que movimento e variação recebem ferrenha oposição dos que deliram com um mundo à imagem de uma Dubai distópica, os animais que saltam de Só um pouco aqui exigem a herança que lhes é devida, um mundo em que possam ser quem são.

Laureado com dois importantes prêmios, o Sor Juana Inés de La Cruz, da Feira Internacional de Guadalajara, e o Premio Nacional de Novela, da Biblioteca Nacional da Colômbia, Só um pouco aqui impressiona pelo conteúdo, forma, sensibilidade e exatidão.

É sempre uma aventura traduzir as alteridades radicais dos animais não humanos e de outros seres, tarefa por vezes inglória. Mas com uma poética narrativa tão elegante quanto contundente, María Ospina Pizano dá um passo a mais nessa aproximação. Se existe mecanismo capaz de tornar a língua dos animais compreensível ao nosso entendimento, este artefato é a literatura e Só um pouco aqui cumpre de modo muito feliz essa tarefa.

MINISTÉRIO DA CULTURA, PETROBRÁS, ASSOCIAÇÃO QUATRO CINCO UM E MARÉ PRODUÇÕES APRESENTAM

Cobertura especial da 4a edição da Feira do Livro, que acontece entre 14 e 22 de junho, realizada com o apoio de Ministério da Cultura, Petrobras, Associação Quatro Cinco Um e Maré Produções

Quem escreveu esse texto

Micheliny Verunschk

É autora de O som do rugido da onça e Caminhando com os mortos (Companhia das Letras).