Literatura,

O sex appeal das geleiras

O romance de autora franco-marroquina sobre uma mulher com compulsão sexual é curto e irresistivelmente excitante

31maio2019 | Edição #23 jun.2019

O meio literário ainda não dispõe de um levantamento oficial apontando com qual frequência autores e autoras arriscam cenas de sexo em suas obras. Uma percepção pessoal assegura que não há dúvidas de que os escritores homens ainda são maioria entre os compositores de trechos eróticos na literatura mundial. 

Há uma explicação óbvia e antropológica. Mais autorizados que são a refletir desde cedo sobre o assunto, meninos desenvolvem maior familiaridade maior com os pormenores do sexo e suas possibilidades. Daí crescem, e viram adultos que escrevem livros em que os personagens transam sem vergonha na frente do leitor.

Se para rapazes como Tiago Ferro, Daniel Galera e tantos outros nomes da dita nova geração nacional, ações como punheta e sexo anal parecem brotar da cabeça para o papel com a mais brutal naturalidade, no caso de autoras mulheres, as cenas costumam ser menos assíduas, esmiuçadas e — ouso dizer — confortáveis. 

Evidente que temos, graças a Deus, nomes como Hilda Hilst para balancear o cenário, assim como são inúmeras as talentosas e bem-sucedidas autoras de erótica que faturam milhares de reais driblando o pudor forçadamente intrínseco ao gênero e o preconceito com que muitas vezes são recebidas. Mas, aceite-se: ainda se trata, infelizmente, de uma minoria.

Diante deste cenário, é revigorante receber a literatura da franco-marroquina Leïla Slimani. Aos 38 anos, com sete obras publicadas, a autora esteve no Brasil em 2018 para participar da Flip como parte da divulgação de Canção de ninar, seu primeiro livro publicado em português. Agora, a Tusquets lança No jardim do ogro, o primeiro romance de Slimani, escrito em 2014. A história de uma mulher que pauta sua vida de acordo com a compulsão por sexo seria prato cheio para a vulgaridade — porém, como deu sorte de nascer da mente preciosa de Leïla Slimani, se transformou em páginas de pura elegância, sensualidade e crueza. 

Seja na narração dos muitos casos que a protagonista Adèle experimenta e esconde do marido Richard, seja no conflito com a maternidade do pequeno Lucien, a autora domina o discurso de maneira límpida e tão consciente que a vida de sua personagem passa a sensação de não ficção. “Os homens vão crer que ela é malandra, lesta, fácil. As mulheres a tratarão como predadora, as mais indulgentes dirão que ela é frágil. Estarão todos enganados”, escreve. 

Pragmatismo

Assim como em Canção de ninar, No jardim do ogro evoca no título a literatura infantil. Ambos também carregam em seus roteiros uma visão pragmática do papel das mães na sociedade. Aqui ela vem pelos olhos de uma mãe que flutua entre extremos de sentimentos — ora se preocupa com o filho resfriado de roupas molhadas, ora enxerga esta mesma criança como um imenso empecilho para sua felicidade.

Até que atinja a saturação absoluta de uma vida insana e, por fim, perigosa — é a ninfomania e seus acessórios que terminam por arremessar Adèle no inferno que dá nome ao livro —, a protagonista se submete a uma horda de amantes. Enquanto oferece seu corpo, tudo é permitido, do sexo agressivo àquele às escuras em um beco sem saída, espremida entre uma lixeira e as cadeiras de um desconhecido. E, mesmo em momentos assim, obscenos, a prosa de Slimani segue um protocolo particular: é curta e irresistivelmente excitante. 

“Não é natural de maneira alguma”, rebate a autora, em entrevista à Quatro Cinco Um, quando perguntada sobre a facilidade com que parece escrever sobre sexo. “Foi muito, muito difícil, e eu tive que trabalhar muito nessas cenas. Escrever uma cena de sexo é muito complicado porque você tem ou o vocabulário pornográfico, ou o erótico. Eu queria descrever o sexo de um jeito muito frio, e foi um verdadeiro desafio.”

A autora define o sexo de Adèle como “clínico”, já que as relações que a protagonista estabelece na cama “não são por prazer”. “Ela não se importa com a conclusão; tudo que quer é caçar homens. Ela não se importa com os homens com quem transa”, resume, explicando a opção de não usar termos explícitos. O leitor não vai se deparar com nada além de “seu sexo” nomeando intimidades das personagens, por exemplo. 

No Jardim do ogro mantém o leitor em suspensão, à espera do próximo risco que Adèle vai se propor a correr, mas sem nunca deixar com que este mote atropele a firme condução da história nem as nuances psicológicas daqueles que orbitam a vida da protagonista. Estão lá, tão bem abordados quanto a compulsão de Adèle, a repulsa de Richard por sexo, a preocupação da melhor amiga de que a adúltera seja pega, e o vazio emocional de uma mãe que vê a filha como rival. 

Slimani pode até modestamente não perceber — ou admitir — o quanto está plenamente no comando de um campo geralmente dominado por homens, e isso não por incapacidade ou falta de interesse femininos, mas, sim, pela opressão centenária e pré-natal que nós, mulheres, sofremos e se reflete em nossa escrita. “Não acho que haja diferença entre um escritor homem ou mulher. Não acredito em literatura feminina”, assegura. 

No entanto, ainda que a entrevistada discorde e garanta que existem apenas dois tipos de literatura, “a boa e a má”, seu No Jardim do ogro pode — e deve — ser recebido com o alívio e o entusiasmo típicos de quando nos deparamos com um desbravador de territórios. A prosa de Leïla Slimani é não só boa, mas rebelde e libidinosa — deve ser algo parecido com isso a que dão o nome de “sexy sem ser vulgar” na internet.  

Quem escreveu esse texto

Marcella Franco

É jornalista e escritora.

Matéria publicada na edição impressa #23 jun.2019 em maio de 2019.