Literatura,
O avô do Grande Irmão
Na União Soviética na década de 1920, ficção científica de Zamiátin antecipou distopias de George Orwell e Aldous Huxley
28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19No futuro, vivendo sob o regime do Estado Único em uma cidade de edifícios transparentes, o matemático D-503 (as pessoas atendem por “números”) é um dos engenheiros responsáveis pela construção do Integral, um foguete que deve ser lançado para colonizar e levar felicidade a outros povos.
Ao ler na Gazeta Estatal que “todo aquele que se considerar capaz deve tomar por dever a redação de tratados, poemas, manifestos, odes ou outros tipos de composição sobre a beleza e magnificência do Estado Único” para ser enviados no voo inaugural da nave, D-503 decide dar sua contribuição. Nós se apresenta na forma das notas escritas por ele para a carga literária do foguete.
D-503 busca descrever a harmonia que rege a sociedade de horários rígidos em que a “não-liberdade” é uma virtude suprema e o governante, chamado Benfeitor, é reeleito todos os anos no Dia da Unanimidade. Engenheiros, Guardiões, cientistas, poetas: todos desempenham seu papel e se submetem à Tábua das Horas, descansando nas poucas Horas Pessoais e Sexuais que lhes são reservadas. Vez por outra, os “números” sentem no ar o pólen vindo das matas para além da Muralha Verde.
A rotina de D-503 é interrompida por um encontro ocasional com I-303, uma mulher enigmática. Aos poucos, ela o faz descobrir sensações antigas, tidas na nova ordem como patológicas — o amor, o sonho, a imaginação —, e o envolve em uma conspiração contra o Estado. D-503 toma consciência, assim, de que há dissonâncias na unanimidade aparente.
Traduções diretas do russo
O mais conhecido livro de Ievguêni Zamiátin (1884-1927) integra o time de obras russas traduzidas do original por aqui. Várias vezes nesse caso. Novos tradutores têm apresentado versões para clássicos que já haviam sido vertidos por grandes nomes como Boris Schnaiderman, Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo, e também difundido escritores fundamentais desconhecidos do leitor brasileiro.
Escrito entre 1920 e 1921, Nós recebeu no ano passado duas novas edições: uma, com tradução de Gabriela Soares, é da editora Aleph, que conta com um catálogo especializado em ficção científica; a outra, traduzida por Francisco de Araújo, é da Editora 34 e integra o ciclo “Narrativas da revolução”, composto de obras escritas depois da Revolução de 1917 e que lidam com os reflexos da incipiente experiência soviética.
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Zamiátin foi um engenheiro naval que participou das revoltas de 1905, o que lhe valeu uma temporada na prisão. Tornou-se um nome promissor na cena literária ainda antes de 1917, com novelas de tom satírico como Provinciano (1912) e Nos cafundós (1913). Durante as revoluções de Fevereiro e Outubro, estava na Inglaterra trabalhando na construção de navios quebra-gelo.
Após a vitória bolchevique, mesmo não sendo mais membro do partido, voltou à pátria e, ao longo da década de 1920, trabalhou em diferentes revistas e editoras, publicou livros, teve peças encenadas e colaborou com outros escritores. Mas foi também preso em diferentes ocasiões e quase deportado em 1922, acusado de atividades antissoviéticas. Ele se tornaria um suspeito permanente, apesar de seguir publicando com regularidade.
Nós o tornou célebre internacionalmente e, na Rússia, agravou de vez sua situação. Submetido à censura e proibido de ser publicado, o texto foi enviado ao exterior e lançado nos Estados Unidos, em 1924, e na Tchecoslováquia, em 1927.
Considerando-se condenado à ‘morte literária’, Zamiátin apelou a Stálin em 1931 e obteve permissão para sair do país
A existência do texto não era segredo na urss: Zamiátin havia lido trechos em público que geraram certo debate na imprensa. Porém, quando cerca de metade dos capítulos surgiu em russo na revista de emigrados Vôlia Rossíi (editada na Tchecoslováquia) em 1927 — aparentemente, sem o consentimento do autor —, a crítica oficial encontrou o motivo perfeito para fechar o cerco.
Novas edições de suas obras foram canceladas, assim como uma peça já com estreia marcada, e seus textos anteriores escrutinados em busca de sinais de não-conformidade. Considerando-se condenado à “morte literária”, Zamiátin apelou a Stálin em 1931 e obteve permissão para sair do país (sua carta, contundente e altiva, é um apêndice bem-vindo na edição da Aleph). Ao que tudo indica, o exílio foi concedido por influência de Maksim Górki. No entanto, nunca foi membro ativo da oposição expatriada e, em 1934, requereu seu ingresso na União de Escritores Soviéticos, chegando a representar oficialmente a urss em um congresso em Paris em 1935. Morreu em 1937 na capital francesa.
Tradição literária
Hoje, Nós é lembrado sobretudo como o predecessor algo obscuro de duas das mais famosas distopias do século 20: Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell. Os paralelos são tantos que Nós inspira uma vontade imediata de reler os livros. Huxley teria negado a influência, alegando desconhecer Zamiátin quando escreveu seu livro; já Orwell percebeu a proximidade entre o livro de Huxley e Nós ao resenhar este último, em 1946 (texto também incluído na edição da Aleph).
Admirável mundo novo desenvolve muitas das implicações científicas e sociais já apontadas em Nós: engenharia de controle da população; dissolução da família; o pragmatismo como norma nas relações sexuais; a felicidade de não ser preciso (nem polido) pensar em conceitos como a liberdade; e a tensão entre o novo mundo “perfeito” e a disfuncional existência humana pregressa.
Orwell se interessa sobretudo pelo lado político de Zamiátin, e em 1984 as paredes de vidro de Nós dão lugar às onipresentes teletelas, a “não-liberdade” dá lugar aos conceitos de “duplipensar” e “crimideia” e o Benfeitor ganha contornos mais nítidos na figura do Grande Irmão. E, no centro das três obras, estão abalos à ordem vigente: vozes descontentes que se veem enredadas em tramas de subversão às regras postas.
Há semelhanças pontuais: em 1984, por exemplo, o protagonista Winston Smith se depara com a possibilidade (i)lógica de “2+2=5”, enquanto D-503 perde o sono por causa da raiz quadrada de -1. Nesse sentido, o posfácio do professor Cássio de Oliveira, incluído na versão da Editora 34, vai além e ressalta o diálogo de Zamiátin com a tradição da prosa russa, em particular com Dostoiévski. Ele relembra que o protagonista de Memórias do subsolo dizia que “dois mais dois igual a cinco também pode ser uma coisinha muito simpática”.
Depois de quase um século de ficções científicas escritas e filmadas sob sua influência direta ou indireta, a trama de Nós pode parecer um tanto batida. Mas isso é o de menos: a ironia de Zamiátin, as descrições obsessivamente fragmentadas e geométricas dos rostos vistos por D-503, a lenta mas perceptível modificação de sua escrita, que aos poucos se distancia do “nós” para chegar ao “eu”, e sobretudo os detalhes de suas observações sobre o mundo ao redor e as indagações sobre como viviam os antigos do século 20 são o que fazem Nós tão divertido e, às vezes inesperadamente, belo.
Odes e paródias
Enquanto Zamiátin escrevia seu Nós, o então jovem poeta e recém-cineasta Dziga Viértov, que se tornaria o principal defensor do cinema não ficcional na urss, compunha em 1919 um texto que viria à luz apenas em 1922, intitulado “Nós. Variação de um manifesto”. Esse “Nós”, porém, não poderia ser mais diferente de Nós em termos de estado de espírito. Em seu manifesto inaugural, Viértov diz: “A alegria das dançantes serras de uma serraria é mais compreensível e próxima de nós do que a alegria do requebrar dos homens. […] Nossa trajetória será: do cidadão desajeitado, através da poesia da máquina, rumo ao perfeito homem elétrico. […] viva a poesia das máquinas que movem e se movem, a poesia das alavancas, rodas e asas de aço, o grito férreo dos movimentos, os ofuscantes trejeitos dos jatos incandescentes”.
Zamiátin não teria como conhecer o texto de Viértov e vice-versa, mas esse entusiasmo futurista surge em forma paródica ao lermos as reflexões de D-503 sobre o ofício dos poetas de seu mundo: “Nossos poetas já não pairam no Empíreo — eles desceram à terra; caminham conosco, passo a passo, sob a rígida marcha mecânica da Oficina Musical; sua lira é o ruído leve das escovas deap dente elétricas, o estalo ameaçador das faíscas na Máquina do Benfeitor, o eco majestoso do Hino do Estado Único, o tinido íntimo dos cristalinos vasos noturnos, o estalo excitante das cortinas caindo, as vozes alegres dos novíssimos livros de culinária, o ruído quase inaudível das membranas pelas ruas”. Já R-13, o amigo poeta de D-503, tem papel de destaque ao declamar suas odes em uma alegre e rotineira cerimônia em que o Benfeitor utiliza sua Máquina para liquefazer cidadãos transgressores.
Com os olhos de hoje, é difícil dissociar a figura do Benfeitor da sombra de Stálin, mas é preciso lembrar que Nós foi escrito ainda em 1920, em meio ao desabastecimento da Guerra Civil e às incertezas em torno do futuro do governo. A essa altura já havia o Terror Vermelho, a Tcheka trabalhava a todo vapor e o próprio Zamiátin já havia sido detido, mas Nós se constrói antes como uma advertência — uma substância alarmada — do que como um espelho desesperado do presente.
Nesse sentido, os paralelos com a realidade soviética, ainda que inúmeros, soam talvez menos diretos ou unilaterais do que, por exemplo, os acrônimos da Novilíngua orwelliana ou mesmo o Grande Irmão e Goldstein, moldados à imagem (física, inclusive) de Stálin e Trótski.
‘Nós’ se constrói antes como uma advertência — uma substância alarmada — do que como um espelho desesperado do presente
Vale lembrar que a urss não foi a única inspiração de Zamiátin: sua experiência na Inglaterra já havia resultado na novela Os ilhéus (1920), e o incômodo com a “taylorização do cotidiano” tinha dado as caras por lá. Em Nós o futuro da urss está no centro das atenções de Zamiátin, mas a Europa industrial também é inspiração nada paradisíaca.
Mesmo crítica aos caminhos da Revolução, Nós de forma alguma é uma obra antirrevolucionária. Antes, ela se coloca contra uma visão teleológica da história: como diz I-303, não pode haver uma “revolução final”, pois “[…] as revoluções são infinitas. ‘Final’ é uma coisa para crianças: elas é que temem o infinito, e precisamos que as crianças durmam tranquilas à noite…”.
Em meio a conspirações e foguetes, Zamiátin se volta para coisas fundamentais como as relações entre indivíduos e a estrutura de governo — e indaga, em especial aos artistas e cientistas, qual seria o papel deles nisso tudo. Sempre irônico, ele parece dizer: “Se acham que a carapuça não serve, cuidado: continuem assim e ela pode cair como uma luva”.
Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.