Literatura,

No colo de Doris Lessing

Para a autora sul-africana, qualquer dono de gato cuidadoso e observador sabe mais sobre felinos que as autoridades que os estudam

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Naomi Mitchison, a escritora e feminista escocesa, costumava organizar em sua propriedade, na Escócia, festas onde políticos, artistas, jornalistas, cientistas e até pescadores da região se mesclavam de uma forma que era ainda novidade na época, fins dos anos 1940, início dos 50. Numa dessas festas, pediu a uma jovem escritora, ainda não célebre e um tanto deslocada, que se ocupasse de um jovem cientista, também ainda não célebre e também deslocado. A escritora o convidou então a um passeio pelos extensos jardins da propriedade. 

Depois de falar sozinha durante duas horas, porém, desistiu de arrancar qualquer reação do sujeito, que então se desculpou, dizendo as únicas palavras que pronunciaria naquela noite: “O problema, entenda, é que só há uma única pessoa no mundo com quem eu consigo conversar”. O caminhante quase mudo era James Watson, que pouquíssimos anos depois ganharia o Prêmio Nobel de Medicina por desvendar a estrutura do DNA junto com Francis Crick, a tal única pessoa com quem conseguia conversar. A jovem escritora, Doris Lessing, demoraria um pouco mais, meio século para ser exato, mas também receberia o Nobel de Literatura por desvendar outras estruturas. 

Mas se o nome de Doris Lessing está ligado, até hoje, graças aos seus posicionamentos políticos e a grandes livros, como O carnê dourado, O verão antes da queda, A canção da relva, a bandeiras progressistas, ao feminismo e à literatura de primeira qualidade, James Watson vem acumulando vergonhas, cancelamentos de palestras e demissões por causa de declarações racistas e posicionamentos deploráveis. Em entrevista ao The Sunday Times, disparou: “Todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência dos negros é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não. Pessoas que já lidaram com empregados negros não acreditam que isso seja verdade”. Melhor mesmo que não tenha aberto a boca para falar com essa mulher, que foi uma das vozes mais atuantes na luta contra o Apartheid. Ponto para os deslocados de humanas.

Em Sobre gatos, lançado agora pela Autêntica, e que reúne num só volume as conhecidas coletâneas Gatos em particular e Rufus, o sobrevivente, acrescidas de A velhice de El Magnífico, Doris não deixa de fazer o elogio da ciência: quando seu gato preferido, El Magnífico, é obrigado a amputar uma das patas dianteiras para se livrar da ameaça de um câncer, e ela tenta a um só tempo desculpar-se e consolá-lo: “Gato, se nós não tivéssemos feito isso, você ia morrer em poucos meses […] Gato, por causa da assombrosa inteligência da raça humana você está vivo, não morto”. 

Mas, se produz esse elogio, também coloca muitas vezes e muito claramente sob suspeita algumas das pretensões mais injustificáveis da ciência, em especial no que diz respeito a definir as capacidades ou incapacidades cognitivas dos bichos: “O fato é que qualquer dono de gato cuidadoso e observador sabe mais sobre felinos do que as autoridades que os estudam”, diz ela, pouco antes de acrescentar que, se o leitor quer informações sérias, deve procurar em revistas que nenhum cientista sonharia em ler, revistas com nomes como Tudo Sobre Gatos ou Nossos Bichanos. De uma delas, aliás, destaca a história de uma gata de fazenda que, sempre que dava à luz uma ninhada, era autorizada por seus donos a ficar apenas com um dos filhotes, sendo os outros distribuídos aos amigos ou interessados, até que uma vez deu à luz a apenas um filhote. Ou ao menos era isso o que seus donos pensavam. Depois de investigar uns estranhos ruídos no sótão, eles acabaram descobrindo que a gata na verdade apresentou-lhes apenas um filhote, tendo ocultado ali, para salvá-los da separação, os cinco filhotes restantes de uma ninhada de seis. Ali os alimentava, ali lhes transmitia os ensinamentos básicos de mãe.

Sem pudor

Doris é uma dona de gatos cuidadosa e observadora, talvez até se possa dizer privilegiada, já que sua relação com os gatos não foi feita desde sempre exclusivamente de amor, nem sem contradições. Criada numa fazenda na Rodésia do Sul (hoje Zimbábue), na África, cuja criação de galinhas era constantemente ameaçada por predadores, Doris narra sem pudor o ódio da família por certo tipo de gato, e como era comum ali o extermínio, ainda que dolorido, dos bichanos. Nada afeita a sentimentalismos, narra com a mesma intensidade a cena em que, muito nova, armada de um rifle, disparou contra um gato que andava comendo as galinhas no quintal, e como o relacionamento com uma gata, sua melhor companheira de infância, na mesma época, permitia escapadas de um ambiente familiar bastante opressivo.

Mas foram necessárias algumas décadas e a mudança para Londres para que se sentisse em condições de dividir sua casa com um gato de um modo que fosse um enriquecimento para ambos. O livro é também um longo depoimento sobre esse aprendizado. A primeira narrativa, “Gatos em particular”, é centrada no convívio com a gata cinza e a gata preta, e a habilidade de Doris para narrar vidas paralelas — como a Ana Wulf e sua amiga Molly, de O carnê dourado, de 1962, ou as esplêndidas avós Lil e Roz, de As avós, 2003 (livro que só deve ser dado de presente a uma avó depois de lido, e dependendo da avó, já que, com seu violento erotismo latente, quebra todos os estereótipos do que seria uma narrativa sobre pacificadas vovós caseiras) — não é desmentida no relato das aventuras e desventuras das duas gatas. 

Com a gata cinza e sua anticompanheira, a preta, tão diferentes uma da outra, a cinza tão pouco afeita, por exemplo, a impulsos maternais, e a preta que parecia ter nascido para a maternidade, Doris vai experimentando sua capacidade de observação, amor e, sim, adivinhação e suposição. Tantos graus do afeto e do desafeto que descobrimos em seus livros de ficção foram aprendidos com a observação dos gatos? Ou, ao contrário, aprendeu a olhar tão bem os gatos porque a criação de personagens tão densos e ricos a ensinou qualquer coisa que agora aplicaria aos felinos? 

“Rufus, o sobrevivente” narra a história de um gato que tinha sido doméstico e, uma vez abandonado pelos donos (“Aquele gato tivera um lar, mas o perdera. […] Ele tivera um lar, amigos humanos que o amavam, ou pensavam que amavam, mas não era um bom lar, porque as pessoas desapareciam com frequência e o largavam para que encontrasse comida e abrigo sozinho”), foi obrigado, com essa inicial desvantagem da domesticidade no enfrentamento com gatos nascidos e criados na rua, passar a brigar por cada próximo prato de comida, por cada próximo gole de água. 

Toda essa manha acabou lhe valendo nas tentativas de se fazer aceito no santuário que era o lar de Doris, onde já reinavam os aburguesados gatos Charlie e El Magnífico. Nesse relato, a autora escreve como quem pesquisa, sonda, para além da região onde se dá o contato amoroso ou não entre homem e gato, aquela outra região de total incomunicabilidade. 

Numa das mais belas cenas do livro, Doris, que já conhece todos os tipos de miados e ronronados de Rufus, que é pura e intensa gratidão pelo gesto de acolhida, conta como, ao fazer um carinho nele, para despertá-lo e lhe dar um remédio (o bichinho estava a poucos meses da morte), percebeu que o gato, ao despertar e se virar para trás, produziu um ronronado intenso que ela nunca o ouvira fazer. Ronronado que desapareceu quando Rufus notou que quem o acariciava era Doris. Retornou então ao conhecido ronronado de gratidão: “Ele despertou com aquele trinado confiante e amoroso de boas-vindas que os gatos usam com as pessoas e os gatos que amam. Mas quando viu que era eu, voltou a ser o mesmo gato educado e grato de sempre, e me dei conta de que aquela fora a primeira vez em que o ouvira fazer aquele som especial. […] Será que Rufus estava sonhando com o tempo em que era filhote? Ou talvez estivesse sonhando com o humano que fora seu dono quando era filhote, ou bem novo, mas que depois sumira e o abandonara. Aquele som derradeiro me chocou e magoou. […] Sua confiança em alguém, seu amor, tinha sido traído de maneira tão terrível que ele não podia se permitir amar de novo, nunca mais”. 

Tantos contos de Doris Lessing tematizam essa impossibilidade de amar, ou seu reverso, a impossibilidade de não amar, como “O hábito de amar”, da coletânea O quarto 19, que é impossível não recordá-los por aqui.

A narrativa que fecha o volume, “A velhice de El Magnífico”, não tem o poder de encantamento e empatia da narrativa de Rufus, que é realmente uma pequena obra-prima e mexe com nossas fobias, desejos e ânsias de forma magistral. Em compensação, extrai tanto de um pequeno toque de pata de gato no rosto acordando um dono, de um pequeno roçar de dorso pelas pernas, que é fácil passarmos, ao lê-la, a desejar viver também esse luxo: “Que luxo é um gato, os momentos chocantes e espantosos de prazer ao longo de um dia, o toque do animal”, escreve ela sobre a presença desse visitante exótico que pode estar quieto num canto, brincando de atravessar, de costas, o chão sob o sofá, usando as patas contra o forro para se movimentar, como quem anda num mundo virado, ou, surpreendentemente, olhando com extrema atenção e curiosidade um humano cumprindo a atividade mais corriqueira.

Numa das mais belas cenas do livro, Doris, que já conhece todos os tipos de miados de Rufus, percebe um ronronado intenso que ela nunca o ouvira fazer

Em várias passagens de sua autobiografia, que ocupa dois volumes de centenas de páginas, ao narrar esta ou aquela história, amorosa ou política, que viveu, Doris Lessing anota “desenvolvi este episódio no meu conto ‘Vinho’”, ou, “narro essa situação no meu conto ‘O dia em que morreu Stálin’”, mostrando a porosidade entre suas narrativas autobiográficas (como este Sobre gatos) e sua ficção. Também ao falar de gatos, ela não barateia em momento algum a mesma qualidade de visão, a mesma precisão da análise, o mesmo humor e capacidade de penetração no outro. Coisas que parece ter aprendido desde a infância difícil na Rodésia do Sul, graças a uma introspecção e autoanálise exemplares, além do convívio, por vezes pacífico, por vezes violento, com muitos animais. 

Doris contou certa vez que, durante a infância, foi treinada para sentar “no troninho” sempre à mesma hora, e quando terminava era recompensada com beijos e cumprimentos: “Que menina boazinha!”. Era o único momento em que se sentia festejada, pois na maior parte do tempo ouvia apenas lamentações por não ter nascido menino. 

Isso a marcou tanto, diz, que um dia, quando já era uma autora consagrada, antes de entregar seu novo romance ao editor, sonhou que entrava na sala dele com um penico na mão e o original dentro dele, exclamando: “Viu como fui boazinha?”. Um luxo conviver tão esbanjadamente, graças a essas abundantes narrativas autobiográficas, com essa alma capaz de nos oferecer alguns dos melhores livros escritos na segunda metade do século 20 e início do 21.  

Quem escreveu esse texto

Carlito Azevedo

Crítico e poeta, escreveu Livro das postagens (7 Letras).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.