Literatura,

Nasce um arquétipo

Novela de Turguêniev inaugura personagem popular da literatura russa do século 19

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

O abastado fidalgo russo Ivan Turguêniev (1818-83) estava com trinta anos, vivendo entre a Rússia e a Europa e caído de amores (para o desgosto de sua mãe tirana) pela soprano Pauline Viardot (1821-1910), quando começou a elaborar seu Diário de um homem supérfluo. Essa pequena novela, resultado de dois anos de trabalho (foi finalizada em 1850), cunhou um tipo que, com matizes variados, povoou a literatura russa do século 19.

O homem supérfluo (líchnii tcheloviek), enquanto figura arquetípica, é um jovem de certo talento e educação, não raro de origem abastada, em desacordo com uma realidade que ele não consegue mudar. Apesar do tom amargo e irônico próprio de um homem voltado para si, ele não chega a ser um anti-herói, mas é fruto de uma geração esmagada por eventos como a autocracia de Nicolau 1º, a malograda insurreição dezembrista de 1825 e a reação conservadora à onda revolucionária europeia de 1848. Exemplos desse tipo incluem Evguéni Oniéguin (Púchkin), Grigóri Petchórin (Lêrmontov) e Iliá Oblómov (Gontcharóv). Assim, nosso homem supérfluo não define uma existência particular, mas a transposição literária de um fenômeno social russo e, no conjunto da obra de Turguêniev, é uma espécie de protótipo do personagem que dá nome ao seu primeiro romance, Rúdin (1856) — muitas vezes contraposto ao niilista Bazárov de Pais e filhos (1862).

Tudo isso já seria o suficiente para lermos com interesse as notas confessionais do moribundo Tchulkatúrin. Mas, passados quase 170 anos, seus monólogos interiores abrem-se tanto para as criaturas subterrâneas de Dostoiévski e de Kafka como para o mundo contemporâneo. Em primeiro lugar, pela forma escolhida: o diário, fazendo-nos mergulhar na consciência de um homem às portas da morte cujo contato com a realidade se limitava a sua aia, “criatura senil, amarela e desdentada”. Segundo, pelo contexto histórico ser mais aludido que deflagrado: Tchulkatúrin não era movido/oprimido por grandes ideais, mas pela busca de aceitação do mundo exterior: “Analisava-me até o último fio de cabelo, comparava-me com os outros, recordava os mais insignificantes olhares, sorrisos e palavras das pessoas com as quais eu gostaria de me abrir”.

Filho único de um pai submisso e de uma mãe tirana e fria, Tchulkatúrin, ao saber que seu fim se aproximava, resolve registrar sua breve existência  — não sem antes nos advertir de que leremos as memórias de um homem supérfluo, insignificante… Após a morte do pai, a única coisa digna de nota de sua vida foi sua passagem pela província de O., quando se apaixonou pela bela Liza. Sem riscos de estragar a leitura, adianto que malogrou o amor desse ser incapaz de reagir espontaneamente aos chamados do coração.

A morte do personagem (tema obsessivo em Turguêniev) vai sendo contrastada com o período do degelo, com os primeiros sinais de uma primavera que, ignorando o desfazimento de uma criatura não habituada ao contato humano, teimava em nascer (“a natureza não contava com meu aparecimento”). Em meio às digressões autoirônicas do narrador, sobressaem momentos de puro lirismo, esculpidos pelas mãos de um mestre: “Mais uma vez gostaria de aspirar o frescor amargo do absinto, o doce aroma do trigo-sarraceno ceifado nos campos de minha terra”. O tom da obra, entre o lírico-nostálgico e o patético-romântico, acompanha as oscilações do tempo e vai contaminando os leitores com um misto de sensações. E, finalmente, no calor sufocante de um 1º de abril, o homem supérfluo, engrandecido pela morte, deixa de ser supérfluo: “Estou morrendo… Vivam, vivos!”.

Quem escreveu esse texto

Daniela Mountian

É crítica literária e editora da Kalinka.

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.