Crítica Literária, Literatura,
Matem Borges!
Coreografias da sensualidade e da morte, o tango e o duelo deram ao autor argentino um modelo ético e estético desenvolvido em ensaios recém-publicados
09nov2018 | Edição #3 jul.2017Na sequência impecável de traduções da Biblioteca Borges, coube à experiente Heloisa Jahn o desafio de verter os dificílimos Martín Fierro e Evaristo Carriego; fecham o volume as milongas que Borges escreveu para violão (Para as seis cordas). A aposta da tradutora é interessante: tirar soluções do português falado no Rio Grande do Sul, pondo o leitor num dépaysement análogo ao que sente o argentino ou uruguaio quando lê a obra de José Hernández sobre a saga de Martín Fierro.
Sem cair no regionalismo, tão evitado pelo autor, a tradução segue o preceito borgiano de que o sentido primeiro e literal pode ser revigorante para a língua. Nada mais fiel ao espírito desses livros sobre a poesia gauchesca e os orilleros que o apagamento de fronteiras geográficas e linguísticas.
O Martín Fierro (1953), escrito com Margarita Guerrero, faz uma discussão crítica da obra literária que tem por herói um gaúcho fictício. Já Evaristo Carriego (1930) reconstrói uma época tendo por foco a vida de um poeta suburbano, amigo do pai de Borges. Um tanto diferentes, publicados em períodos distintos, os ensaios são importantes na produção borgiana por tocarem em pontos sensíveis da história e da cultura argentina, tendo despertado críticas que viram na sua reconstituição uma construção ideológica.
O autor teria recontado a história argentina sob um ângulo pessoal e familiar, montando uma mitologia fundacionista do país e de Buenos Aires de pouco lastro factual. Não cabe discutir aqui a argumentação que pretende desconstruir a narrativa desses escritos, nem os esforços que vêm sendo feitos para a sua revisão. A leitura desses ensaios é a melhor prova de sua vitalidade. Servirá também para relativizar as objeções de que Borges é mero autor cerebral, dado a charadas intelectuais e a abstrações metafísicas.
O mergulho na vida dos homens simples que vivem na vaga topografia entre o campo e a cidade tem um sentido estratégico na visão estético-política de Borges. Por meio da saga de Fierro se faz a revisão crítica de uma forte tendência romântica da historiografia argentina, que procurava institucionalizar o gaucho como o herói nacional; com a biografia de Carriego, o leitor é convidado a visitar os arrabaldes portenhos e conhecer figuras como os compadritos, com direito à desmitificação da idolatria do tango, cujo espírito teria sido destruído ao ser transformado em canção sentimental.
Símbolos de tantos outros como eles e, afinal, também desse algo indefinido que é o homem, Fierro e Carriego são heróis às avessas, vivendo entre nobreza e pobreza, na ciclotimia da força e da fraqueza, entregues a uma geografia imprecisa que espelha a cisão interna e que leva ao constante cruzamento de fronteiras. Fierro e seu companheiro Cruz vão do exército à marginalidade e à vida de refugiados no pampa, entre os índios; Carriego, da alta literatura à cultura popular. O que faz deles seres de carne e osso, como a maioria das personagens dos contos fantásticos borgianos, apesar das aparências.
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A estratégia para resgatar as duas figuras de apropriações indevidas é ao mesmo tempo simples e sofisticada: o gaucho não é grande por ser autêntico, nem o poeta é suburbano por ser genuinamente do arrabalde (aliás, nasceu na província). Autenticidade não significa, por si, valor estético-moral. O estético deve ser inextricavelmente unido ao ético, não só no nível abstrato.
O que interessa é como a índole ou caráter casa com a ação, com a expressão, com o modo de enunciação. A sentença moral é vazia, desacompanhada do gesto que a realiza. Isso explica a busca estilística de Borges pela fórmula cortante, precisa, como esta, em que define o princípio: “Em minha curta experiência de narrador, constatei que saber como fala uma personagem é saber quem ele é, que encontrar uma entonação, uma voz, uma sintaxe particular, é encontrar um destino”.
Fundo ritual
A realização da significação no gesto, do sentido pela ação, é o que lhe desperta o interesse pela conversa, o truco, a milonga, o tango, o duelo. Muito se criticou Borges em vida, pela repetição dos mesmos causos, não se percebendo que na reiteração havia um fundo ritual (como no jogo de cartas e nos passos de dança), rito de rememoração e atualização do passado (problema fundamental de toda narrativa).
Em seu livro publicado em espanhol sobre o tango, Cuatro conferencias (Sudamericana, 2016), reunião de conferências que proferiu em Buenos Aires em 1965, o leitor reencontra velhas anedotas e outras novas, como a do negro alto e elegante Sin Barriga. Assistindo a um filme western, ele se empolga com o duelo em que o bandido mata o xerife e, sem pestanejar, mata também o comissário de polícia em plena sessão. Os tiros na tela se confundem com os tiros na plateia. Blefe ou não, pouco importa, pois, assim como no truco, o que está em jogo é a performance, como nos infindos casos dos valentões que vencem a briga só pela atitude, sem lutar, ou nos dos guapos e compadritos que provocam e desafiam somente pelo prazer de desafiar e brigar.
As conferências sobre o tango retomam um tema anunciado no ensaio sobre a história do estilo musical de Evaristo Carriego. Conta-se nelas o episódio do bailarino que, usando da prerrogativa de ser a parte ativa na dança, mata a comparsa durante a apresentação e continua a dançar com ela sem que a morte seja notada pelo público. O episódio encena o sentido próprio do tango como música da sensualidade e da morte. Serve também de prelúdio a um lance mais genial do prosador-conferencista: apresentar o duelo de facas como um lento bailado de morte.
Mostra-se, assim, o que já se anuncia em escritos anteriores: o quanto o corpo é fundamental na literatura desse autor que os adversários já em vida teimavam em chamar de cerebral. Respondendo discretamente a um deles, Ernesto Sabato, autor de um livro sobre o tango, Borges contesta a definição de Enrique Santos Discépolo (genial autor do tango “Cambalache”), para quem o “tango é um pensamento triste que baila”. Para Borges, a “essência” do tango não está nem em ser pensamento, nem em ser triste.
Cabe lembrar que os “cortes” e “quebradas” da milonga e do tango, os rasqueados no violão, os golpes secos e precisos do punhal servem para tipificar não só o ideal de literatura, mas também o leitor ideal borgiano, como bem identificou Ricardo Piglia, ao opô-lo ao leitor bovariano. Consta que, ao se despedir dos amigos no porto de Buenos Aires, Witold Gombrowicz foi indagado por um repórter sobre o que era preciso para que a literatura argentina alcançasse estatura internacional. O escritor polonês teria respondido: “Matem Borges!”. Não sabia que estava prestando uma homenagem a ele.
Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.
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