Literatura japonesa,

Paradoxos e utopias 

Contos são um mergulho no mundo de Yukio Mishima, autor que tentou fazer de si mesmo uma obra aberta para decifrar a esfinge que o habitava

29nov2024 • Atualizado em: 05dez2024 | Edição #88 dez
O escritor japonês Yukio Mishima (Tadahiko Hayashi/Reprodução)

Morte em pleno verão já havia sido publicado no Brasil em 1987, a partir de uma tradução americana, algo bastante comum em nosso mercado editorial décadas atrás, quando eram raras as traduções diretas de idiomas menos usuais. Como os editores americanos cortaram trechos que consideravam de difícil compreensão para seus leitores, acabaram deturpando também o que se lia por aqui. Daí, deve-se saudar a presente tradução de Andrei Cunha, direta do original japonês, como um evento admirável — inclusive por assinalar mais um passo na superação do nosso colonialismo cultural. Mas também porque não se trata de um autor qualquer, que teria chegado à fama por circunstâncias fortuitas. Yukio Mishima é, na verdade, uma grande oportunidade para decifrar a natureza da literatura como expressão dos paradoxos humanos.

Isso tem origem em sua própria trajetória. O momento em que Mishima se matou rasgando o ventre no ritual do seppuku diante das câmeras de TV, em 1970, talvez resuma o que ele vinha praticando em sua obra, de modo menos espetacular mas recorrente. Ou seja, tornar a si mesmo cobaia de uma busca de sentido não só de certa identidade nipônica, que julgava perdida, mas também de sua própria identidade masculina, que ele buscava projetar num Japão idealizado pela legitimidade e pureza da tradição.

Mergulhar no mundo de Mishima implica o desafio de decifrar um enigma japonês. E assim, na leitura dos contos, ocorre o confronto com um autor que se enredou nos mais diversos paradoxos. Não apenas sua temática, também sua estilística áspera esconde fantasmas subjacentes às situações mais banais — que de banais não têm nada. É preciso ler nas entrelinhas para encontrar a grande sombra projetada pelas contradições de Mishima, a começar por sua conflitiva masculinidade. 

Do garotinho que gostava de se vestir de mulher, tornou-se um pai de família que moldou seus músculos até o estereótipo atlético, para posar de São Sebastião flechado, como se pode ver no célebre registro fotográfico que ele deixou. Ao mesmo tempo que se opunha à ocidentalização do Japão, o escritor não escondia o encanto pela literatura de Wilde, Proust, Thomas Mann, D’Annunzio, Radiguet. E se por um lado lutava contra sua efeminação, por outro ousava empregar a iconografia de um santo católico na representação do seu homoerotismo. A chave para entender o fascínio que Mishima provoca dentro e fora do Japão parece estar nessas contradições expostas como feridas.

Perspicácia narrativa

Curiosamente, boa parte dos contos do livro aborda casais heterossexuais tentando aplainar contradições insolúveis, às vezes trágicas, como no conto do título, ou também em “Papel-jornal”, relato de uma fantasia paranoica resultante de um país atropelado pela cruel divisão de classes do pós-guerra. Permeada por vácuos enigmáticos, Morte em pleno verão não parece uma obra de apelo fácil. Mas é notável a sagacidade do autor na caracterização de personagens, levando ao limite o recurso do narrador onisciente em terceira pessoa, que ele sabe manejar sem cair num realismo inconsequente.

Veja-se o casal de amantes de “A garrafa mágica”. Ela uma ex-gueixa e ele um seu cliente apaixonado, no passado, encontram-se casualmente durante uma viagem a São Francisco, na Califórnia. Com perspicácia narrativa, Mishima revela a maneira com que ambos tentam se comportar como ocidentais, na contramão dos costumes nipônicos. Mas sua maestria na descrição de caracteres humanos chega ao auge nos dois contos mais impactantes do livro.

Em “Patriotismo”, de 1960, Mishima associa morte, erotismo e amor à pátria. Seu foco narrativo se concentra em descrever o preparo e a prática do seppuku, suicídio sangrento e doloroso, por um jovem tenente do Exército, envolvido num golpe militar frustrado. A esposa o acompanhará num duplo suicídio, em meio à paixão quase sagrada que os une, logo após a lua de mel. Quando transam pela última vez, beijam mutuamente as partes do corpo que a lâmina irá dilacerar, porque “o desejo da carne era um desejo de morte”. Se já é assustadora a exuberância de detalhes com que Mishima apresenta esse ritual considerado honroso na tradição japonesa, ainda mais perturbador é seu sentido profético, ao antecipar o mesmo ritual suicida que ele praticaria dez anos depois.

O fascínio que Mishima provoca parece estar nas contradições expostas como feridas

Já em “Onnagata”, revisita outra de suas obsessões: a feminilidade do macho. A argúcia que denota nesse relato de 1957 soa instigante ainda nos dias atuais, em que a transgeneridade performativa se tornou central nos debates sobre questões de gênero. Nele, o protagonista é um ator do teatro nô especializado em interpretar papéis femininos, que se traveste também fora dos palcos. Sua beleza física e delicadeza o aproximam mais dos anjos do que dos humanos, por ser “fruto de uma união ilícita entre o sonho e a realidade”. 

O onnagata faz parte de uma utopia que fascinava Mishima. Para ele, era apenas aparente a oposição entre seu culto à masculinidade exacerbada e o fascínio por essa androginia sagrada: os polos se complementavam. Se um imperador divinizado concentra a grandeza nacional, um exército de samurais garantia seu poder, mas oferecia também uma reserva do sonho de amor entre os homens — presente no Hagakure, obra ancestral que continha as regras estritas de um bom samurai.

Pode-se dizer que Mishima integra a mesma estirpe de Walt Whitman, porque escreveu em sua própria pele — exceto que foi ainda mais longe. Tentou fazer de si mesmo uma obra aberta para expor seus paradoxos e decifrar a esfinge que o habitava. A morte escolhida evidencia como o autor foi até as últimas consequências. Antes de seguir para o “ataque” ao quartel-general, onde realizaria o seppuku, deixou escrita sua última frase: “A vida humana é breve, mas eu gostaria de viver para sempre”.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

João Silvério Trevisan

É escritor, ensaísta, dramaturgo e cineasta. Foi um dos fundadores do jornal Lampião da Esquina e autor de, entre outros, Devassos no Paraíso (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Paradoxos e utopias ”