A escritora Julia Wähmann (Damian Jacob/Divulgação)

Literatura brasileira,

Entre o riso e o choro

Em livro-diário sobre diários, Julia Wähmann conecta indivíduos e tempos nos mostrando o que fazer com a perda

01jan2025 • Atualizado em: 13jan2025 | Edição #89 jan

“Que tipo de diário eu gostaria que fosse o meu?”, pergunta Virginia Woolf em 10 de junho de 1919. Pouco mais de cem anos depois, estamos em pandemia, e a pergunta persiste para quem faz da escrita um lugar a habitar quando o mundo ficou longe. É assim em Triste cuíca, livro-diário sobre diários, que suplementa a pergunta de Woolf com outra: “Como driblar a tristeza?”. 

Com ela, chegamos ao coração do nosso horror, no Brasil sob Bolsonaro, e da nossa resiliência. Entre um e outra acontece o livro novo de Julia Wähmann, mestra nessa arte do drible, que desde seu primeiro romance, Cravos (2016), seguido de Manual da demissão (2018), vem nos mostrando o que fazer com a perda — de um amor, de um emprego e, agora, do mundo.

Antes de virarem livro, alguns dos textos de Triste cuíca foram oferecidos on-line a leitores pandêmicos em “Corona notes”. O primeiro deles, inclusive, é o texto de abertura do livro: a narradora está voltando de uma viagem, já com a Covid-19 batendo na nossa porta, e espia de rabo de olho as linhas poéticas que um garoto escreve em seu caderno, enquanto o seu estava abandonado na mochila. A ideia era transformar em ficção os dias narrados ali.

“Na prática, tudo ficava uma merda”. Começa assim a jornada que temos entre as mãos, de resgate de cadernos mais ou menos recentes e de agendas da infância e da adolescência, que se misturam com notas cotidianas de um tempo absurdo e com textos sobre diários de outros escritores.

Julia não está sozinha. Entre os diaristas que a acompanham, um não é escritor: seu avô, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, que deixou rastros dessa experiência a serem resgatados pela neta. “Tento imaginar o meu avô, que não conheci, abrindo suas gavetas, mais de trinta anos depois.” Diários são uma escrita do presente, mas lançam uma pergunta para o futuro sobre o que vai ficar de nós mesmos.

Joan Didion, ao se perguntar sobre os motivos para se ter um caderno em um texto que Julia também recupera, chega à ideia de que o fundamental é enxergar, no futuro daquele passado, que era assim que eu sentia. Acho que é possível acrescentar, em muitos casos, como em Triste cuíca, que esse “eu” acaba se tornando um “nós”. Não à toa um outro diarista convocado é o cineasta David Perlov, que em seu filme Diário torna esse gênero coletivo, aberto aos outros, capaz inclusive de mudar de “eu” no meio do caminho, como quando uma de suas filhas o toma para si.

Diários são uma escrita do presente, mas lançam uma pergunta para o futuro: o que vai ficar de nós mesmos

Triste cuíca é feito de muitas vozes, dentro e fora dos diários — esse “nós” que sua escrita cria tece ligações entre os amigos da adolescência e os de agora, os diários próprios e alheios, as guerras que atravessaram as vidas de Woolf, do seu avô, de Perlov, chegando nas batalhas de hoje, até as mais íntimas, contra seu próprio passado.

Até aqui, tenho três cadernos inteiramente destruídos. Rasgar todas essas páginas não deve ser suficiente para esquecê-las, no fundo deve ser uma grande bobagem tudo isso.

Os cadernos rasgados são o contrário do apagamento, porque é o ato de dar-lhes um fim, justamente, que faz com que uma outra escrita seja possível, a construção de um teto seu que se posiciona contra o imaginário do que uma menina ou uma mulher deveriam escrever nesse espaço da intimidade.

Sentidos

Do passado ao presente, numa via de mão dupla, há uma busca pelo sentido do que e de como escrever. 

Em todos esses meses, me pareceu que só era possível escrever sobre todas essas coisas que estão diante do meu nariz, porque elas eram inéditas e urgentes, sobretudo incontornáveis.

Só que as coisas imediatas levam por caminhos inesperados. Fios, antes invisíveis, vão conectando as experiências. A enxaqueca de Didion pode virar a de Julia — e quem sabe a minha. Os corpos, especialmente sob a pandemia, se mostram vulneráveis, expostos, quem dirá quando o Estado insiste em descuidar deles.

Da Espanha, uma colega de trabalho me escreve: ‘Dear Julia, It breaks my heart to read about Brazil’. Meu coração também estilhaça todo dia ao abrir o jornal. 

Ler Triste cuíca é um reencontro com essa dor, tão pulsante ainda, de efeitos incalculáveis, mas cuja memória, talvez como estratégia de sobrevivência, vai se apagando imperceptivelmente.

Em um livro sobre a história do caminhar, Rebecca Solnit diz que, certa vez, calculou que o texto de um de seus livros teria cerca de seis quilômetros de extensão se fosse destrinchado numa única linha de palavras.

O livro é um caminho, com saltos entre memórias, leituras, fragmentos, porque é o que os dias pedem. E acompanhar os dias é às vezes não ter nada a dizer, é ficar muda ou deixar o choro vir, dançar e observar. A linguagem do diário dá espaço para esse tipo de suspensão e de lacuna; como também para o coro e o monólogo, para o continuum e as variações, aquilo que acontece quase todos os dias e para cada um de nós, mas de modos diferentes apesar dos lugares-comuns.

Em tudo o que Julia escreve, é principalmente o humor que dá a ver nossos pontos de encontro.

Nas fotos de turma da época, um menino de olhos inexpressivos, cores lavadas. Mas era dele que eu gostava. E ele, aparentemente, gostava de mim. Quero dizer, ao menos era nisso que a minha versão de dez anos queria acreditar.

Por mais que a gente não tenha sido chamada de Miojo por um menino como o da infância da narradora, ou não tenha decidido fabricar uma gerigonça de plástico para poder se abraçar com segurança na pandemia, a exposição de si mesma como alguém frágil, que nunca está certa do seu lugar, e é capaz de rir disso, nos conecta com algo que está em cada um de nós — Brunas, Guilhermes, Palomas, Gregs. Algo entre o riso e o choro, nossa triste cuíca, sem a qual o samba diferente fica.

Quem escreveu esse texto

Paloma Vidal

Escritora, tradutora e professora da UNIFESP, é autora de Não escrever [com Roland Barthes] (Tinta-da-China Brasil).

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “Entre o riso e o choro”

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