Literatura,
Lampejos na noite carioca
Livro reúne textos sobre a vida noturna no Rio dos anos 1900 e põe em evidência o cronista Vagalume, “anti-João do Rio” já quase esquecido
01mar2018 | Edição #9 mar.2018Francisco Guimarães, autoapelidado Vagalume, é lembrado hoje, se tanto, por causa do livro Na roda do samba (1933), impressões sobre o gênero que se firmava. Há ainda quem saiba que Vagalume foi um dos principais cronistas carnavalescos cariocas da primeira metade do século 20. Morreu em 1947, aos setenta anos.
Mas, para saber que ele manteve, entre março e maio de 1904, no jornal A Tribuna, uma coluna intitulada “Ecos noturnos”, só mesmo um estudioso do Rio do início do século passado, sobretudo das crônicas e do Carnaval. O historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, que organizou com Mariana Costa o livro Ecos noturnos, é um deles. O volume reúne 45 edições das extensas colunas de Vagalume. Os organizadores reservaram para si trinta das 496 páginas do livro, deixando o restante para a reprodução das crônicas. Escritas no varejo do jornalismo, sem mirar a posteridade, elas sobrevivem como peculiar ponto de observação de um Rio em conflito, que decidia o futuro.
Nomeado prefeito com carta branca do governo federal, o engenheiro Pereira Passos iniciou em 1903 uma profunda reforma da cidade com o objetivo de “civilizá-la”, de fazer dela uma Paris tropical, deixando para trás o que o poeta Olavo Bilac classificara, em 1900, de “cidade de pardieiros, habitada por analfabetos”.
Entusiasta do prefeito
O bota-abaixo destruiu moradias de famílias pobres para que avenidas passassem. Vagalume era um entusiasta do prefeito, a quem exaltou, em 16 de março de 1904, como “homem enérgico, ativo e honrado”. O administrador e a polícia estavam, na avaliação do cronista, certos por limpar “um bocadinho a cidade, internando nos asilos e na Casa de Detenção os mendigos e vagabundos”.
Afirmações assim soam paradoxais vindas de quem vêm — e eis aí um dos atrativos de Ecos noturnos, percebidos pelo organizador: seus contrastes, suas nuances. Francisco Guimarães era negro, nascido em 1877 (antes da Abolição, portanto) numa família que descrevia como sendo de trabalhadores “pobres, porém laboriosos”.
Combinando perseverança e sorte, conseguiu não virar mendigo nem vagabundo, mas jornalista. Aos catorze anos, auxiliar de trem na Estrada de Ferro Pedro 2º (futura Central do Brasil), conheceu um repórter que cobria as notícias da ferrovia e lhe daria o primeiro empurrão. Em 1896, já estava no Jornal do Brasil, que começara dois anos antes — após uma breve fase monarquista — a construir seu perfil de diário voltado para as camadas populares. Era o único negro da redação. Em 1901, tornou-se responsável pela coluna “Reportagem da madrugada”. Nascia aí o pseudônimo: “Os notívagos são apelidados de vagalumes. […] Sejamos vagalumes também”.
Combinando perseverança e sorte, conseguiu não virar mendigo nem vagabundo, mas jornalista
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Era um nome conhecido quando se transferiu para A Tribuna, jornal fundado em 1890, priorizando o noticiário político, mas que se permitia ter seções um pouco mais leves como “Ecos noturnos”. Desde a estreia, explicitou que pretendia mostrar outro lado do Rio: o dos trabalhadores noturnos, dos moradores dos subúrbios, dos pobres merecedores de outras páginas que não as policiais, dos policiais em serviço ou fora dele, das festas populares como os “sambas” — que ainda não era gênero musical. Nada mais anti-Bilac, anti-Pereira Passos.
Vagalume era um anti-João do Rio. “Ecos noturnos” surge no momento em que o nome João do Rio — Paulo Barreto o adotara em fins de 1903 — está em voga, pois ele publicava na Gazeta de Notícias a série de reportagens “As religiões do Rio”, na qual retratava o candomblé com “olhos de civilizado”.
À ideia de que os cultos de origem africana são bárbaros, Vagalume contrapunha uma visão positiva. Seu informante, segundo dizia, não era “nenhum desses de quem se ocupa o João do Rio na Gazeta de Notícias, mas sim um cabra escovado na arte da mandingaria”. Famosos pais de santo do Rio de então, como João Alabá e Sanin, aparecem na coluna.
Renovado a cada madrugada, em jornadas que podiam ir até as sete da manhã e render um grande número de notas, Ecos noturnos é um projeto errático por natureza. Vê-lo em conjunto permite apreciar isso.
Vagalume valorizava a música popular, registrando nomes que se tornariam lendários, como os de Sátiro Bilhar, Quincas Laranjeiras e Irineu de Almeida, mas condenava lugares de dança (“maxixes”) que não considerava de boa moral. Ele apontava, com sarcasmo, várias formas de corrupção de policiais e outros servidores públicos, mas não dispensava a comida de graça nos restaurantes e os presentes que comerciantes lhe davam em troca de uma nota. Dizia-se um cronista das pessoas simples, mas escrevia que o bonde estava muito barato.
Ele se despediu de “Ecos noturnos” para arriscar-se criando os pequenos jornais A Trepação e O Vagalume — seria de novo no JB, a partir de 1910, que a fama como cronista do carnaval se firmaria. A coluna acabou antes da Revolta da Vacina, em novembro de 1904. Mas tocou no assunto em 31 de março, dando voz a um tal “Ceará”, que vem defender os mata-mosquitos, com salários atrasados havia três meses: “São uns homens sacrificados, porque pela natureza do trabalho eles são obrigados a umas tantas cousas que só servem para cobri-los de ódios. Daí a antipatia que estes pobres homens adquirem no nosso meio comercial, como se eles fossem culpados da ditadura higiênica”.
Apesar das contradições, Vagalume sabia quais deviam ser os protagonistas da sua coluna.
Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.
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