Literatura,

Feminismo avant la lettre

Escritora manteve-se longe de manifestos políticos sobre a condição da mulher, mas criou muitas personagens femininas já emancipadas

01maio2019 | Edição #22 mai.2019

Revendo a obra — e a vida — de Colette, surpreende que a escritora ainda seja tão desconhecida entre o público brasileiro, sobretudo pelo fato de que, nutrida por reviravoltas audaciosas, sua biografia ecoe de modo tão singular o levante feminista do início do século 20.

Um simples resumo da sua vida nos dá uma perspectiva de suas aventuras e do ambiente social em que estava inserida: nascida em 1873 em Saint-Sauveur-en-Puisaye, Sidonie-Gabrielle Colette, com vinte anos, instala-se em Paris ao se casar com o jornalista Henri Gauthier-Villers, mais conhecido como Willy. Nesse período, escreve os quatro volumes do best-seller Claudine, mas quem os assina é Willy, a quem o sucesso do livro é consagrado em uma primeira recepção. 

O relacionamento será marcado por infidelidades de ambas as partes. Colette, mesmo tendo respondido melancolicamente às traições (vide registros em cartas), também vai assumir casos extraconjugais, chegando a “compartilhar” a amante do marido — no caso, a socialite americana Georgie Raoul-Duval. Já no fim do seu casamento com Willy, Colette trava um romance com a aristocrata Mathilde de Morny, também conhecida como Missy. A união dura cerca de seis anos e acompanha a fase em que Colette é reconhecida como escritora, atriz de teatro e dançarina. Como Missy se veste com trajes masculinos, pervertendo os códigos formais daquela sociedade, é-lhe negada a compra de uma casa de campo, de modo que a casa é registrada em nome de Colette. Mais tarde, Colette se recusa a vender a casa para Missy, descumprindo o acordo que ambas haviam feito.

Do relacionamento com Missy, Colette passa ao segundo casamento, dessa vez com Henry de Jouvenel, redator-chefe do Le Matin, um dos quatro maiores jornais franceses da época, e para o qual colabora como jornalista e escritora. Fruto da união do casal, nasce Colette de Jouvenel, sua única filha. Aos 47 anos, em uma viagem à Bretanha com o marido e o seu filho Bertrand de Jouvenel, Colette se aproxima do enteado, de apenas dezesseis anos. Para Bertrand, esta será uma viagem cheia de aprendizados: é na biblioteca da madrasta que o menino descobre Proust, um dos autores de preferência de Colette (ao lado de Balzac). Ela e Bertrand estabelecem uma íntima relação, que inclui aulas de natação, pescarias, andanças em lojas de antiguidades e… a perda da virgindade do garoto. Ao voltar a Paris, Bertrand está apaixonado pela mulher do pai. A relação dura cinco anos e marca o fim do casamento entre Colette e Henry.

Devido à reputação ‘escandalosa’ de Colette, a Igreja Católica se recusa a fazer a cerimônia de seu enterro conforme as tradições religiosas

Ela se casa mais uma vez, em 1935, com Maurice Goudeket, que será seu companheiro até o fim da vida, em 1954. Devido à reputação “escandalosa” de Colette, a Igreja Católica se recusa a fazer a cerimônia de enterro conforme as tradições religiosas.

Libertária, independente, amante dos prazeres da carne e da mesa (era considerada uma legítima gourmande), investigadora apaixonada pela natureza, curiosa pela arte de modo geral (também foi pianista), Colette soube se inspirar em suas experiências de vida para obter as personagens de sua obra, confundindo-se muitas vezes com boa parte delas. 

Estilo realista

Segundo Colette, o escritor deve saber olhar e não inventar, fórmula que justifica ao mesmo tempo seu interesse por fatos da vida cotidiana e um estilo realista, fiel às descrições. Em seus romances, por exemplo, são raras as dimensões mais complexas, que exigiriam investigações metafísicas ou psicanalíticas quanto às situações e às personagens. 

No romance Sido (1930), temos o retrato da mãe, Sidonie Landoi Robineau-Duclos, figura responsável por iniciar Colette nos conhecimentos artísticos e instruí-la com conselhos morais, sendo muito — talvez excessivamente — presente na vida da filha. O personagem de Chéri (1920) se vale de Auguste Héricot, milionário parisiense e amante de Colette durante curto período entre os romances com Missy e Henry de Jouvenel. Blé en herbe (1923) aborda a história de amor entre um jovem rapaz e uma mulher bem mais velha e se inspira na história de Colette com Bertrand de Jouvenel, assim como o romance La Fin de Chéri (1926), que trata do fim desse relacionamento.

Em A ingênua libertina, publicado em sua segunda edição em 2019 pela editora Nova Fronteira, Minne é uma garota que demonstra desde a infância incontestável vocação para a libertinagem. Na primeira parte do livro, então com “catorze anos e oito meses”, a garota está inquieta quanto aos mistérios sexuais, que até então desconhece. Dissimulada, segue um instinto que a aconselha a “permanecer, perante os olhos de Mamãe, uma criança grande e obediente, cuidadosa como uma gata branca, que diz ‘Sim, mamãe’, e ‘Não, mamãe’, que vai às aulas e se deita às nove e meia da noite”. 

Mas o que se passa na ausência da mãe revela uma menina perversa, ardilosa, movida o tempo todo por desejos que ela mesma não tem intenção de abafar. Sua cabeça efabuladora e seu corpo curioso provocam-lhe insônias, e Minne, tão jovem, passa a projetar aventuras com um tipo desconhecido, Cabelo de Anjo, que, segundo os jornais, se encontra foragido da polícia. Nossa protagonista será capaz de não só elaborar fantasias com Cabelo de Anjo, mas de procurá-lo pessoalmente, interpelando homens que encontra na rua. Ao leitor, esses encontros com estranhos servem para evidenciar uma Minne que, senhora de si, joga com a sedução, mas não se deixa enganar. Trata-se de uma jovem púbere, mas já capaz de encantar os olhares masculinos treinados a reconhecer o flerte. 

Tortura sentimental

Nessa primeira parte do texto, interessa observar principalmente a relação que se estabelece entre Minne e o primo Antoine, de dezessete anos, constantemente atormentado pela presença da menina: suas permissões para beijinhos no rosto (e não mais do que isso), suas ordens e interdições, suas armadilhas para humilhá-lo, sua habilidade em descrever-lhe amores inventados, sem outro intuito senão o de torturá-lo sentimental e sexualmente. 

Ora, trata-se de um cenário perfeito para uma história de poder e submissão, com os dois personagens caindo como uma luva em seus papéis de dominadora e aspirante a amante subjugado. Como saberemos na segunda parte da história, a brincadeira entre os primos culminará em união matrimonial — a natureza desse relacionamento, porém, perfeitamente pactuada desde o início do livro, se manterá a mesma, com outras progressões, é verdade, mas com Antoine para sempre devoto à amada e fatalmente exposto a toda sorte de sujeição, traição e rebaixamento. 

Seu diferencial deve-se ao fato de que passou longe da militância, e sua maneira de responder à discussão foi criando personagens femininas já emancipadas

Minne, essa personagem hedonista, movida fundamentalmente pelo prazer, nunca se submeterá aos julgamentos do narrador, assim como tantas outras personagens femininas de Colette, tidas como egoístas por sempre agirem em nome de suas satisfações pessoais. Minne terá total autonomia para suas decisões e, se tem uma trajetória marcada por frustrações, elas se devem apenas à dificuldade em encontrar amantes que realizem suas insaciáveis aspirações sexuais. Temos, assim, uma inversão dos papéis dos casais tradicionalmente estabelecidos nesse início de século, quando era o homem que, respondendo a instintos de volúpia — “instintos” autorizados e confirmados por uma sociedade conformista e reguladora —, costumava se predispor a casos extraconjugais. 

Embora comumente tachada de “feminista”, a obra de Colette pede alguns cuidados quando se trata de uma rotulação no estrito sentido do termo. Há que se atentar para características que tornam sua obra tão original diante da produção da mesma época, que teve como grande ícone a escritora Simone de Beauvoir (grande fã da obra de Colette).

Mesmo se pronunciando à distância de posicionamentos intelectuais e políticos que visavam discutir o infortúnio feminino narrando-o, Colette esteve, como todo grande escritor, à escuta do seu tempo, sendo indiscutivelmente impactada por ele.

Seu diferencial, portanto, deve-se ao fato de que passou longe da militância, e sua maneira de responder à discussão naquele início de século foi — assim como fez em vida — criando personagens femininas já emancipadas, instigadas a reinventar as próprias condutas e prazeres e, consequentemente (mas nunca pronunciadamente), julgar e repreender os do outro. Para tanto, como podemos notar nesta obra que agora chega ao Brasil, a escritora lança mão de recursos descritivos que visam exaltar a complexidade das relações, sem, para isso, repreendê-las por meio de julgamentos e intenções que poderiam ser facilmente interpretados como moralizantes.   

Quem escreveu esse texto

Marcela Vieira

Tradutora e cofundadora da plataforma de arte www.aarea.co, prepara uma tese de doutorado sobre a obra do Marquês de Sade pela Universidade de Paris 8

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.