Literatura,
Família em claro-escuro
Romance epistolar não ficcional de Natalia Ginzburg recria a vida da família de Alessandro Manzoni, escritor italiano do século 19
09nov2018 | Edição #4 ago.2017“Eu tentei reunir a história da família Manzoni; queria reconstruí-la, recompô-la ordenadamente no tempo. […] Queria que os fatos falassem por si. Queria que as cartas cordiais ou frias, cerimoniosas ou diretas, escancaradamente mentirosas ou indubitavelmente sinceras, falassem por si.
“Eu não queria que Alessandro Manzoni fosse o protagonista desta longa história familiar. Uma história familiar não tem um protagonista, cada um de seus membros é de vez em quando iluminado e levado de volta às sombras” — escreveu Natalia Ginzburg sobre seu livro A família Manzoni.
Alessandro Manzoni (1785-1873) é o grande romancista italiano do século 19, seu livro Os noivos (lançado no Brasil pela Nova Alexandria), de 1827, é considerado uma obra-prima que marca o início da moderna narrativa italiana.
Natalia Ginzburg (1916-1991), nascida em Palermo, autora de Léxico familiar, Caro Michele, Foi assim, O caminho da cidade, As pequenas virtudes, entre outros, tradutora de Proust e Flaubert, militante antifascista, é das mais excepcionais escritoras de todos os tempos e países.
Em A família Manzoni, Ginzburg nos deixa ver por meio de cartas e reminiscências, escritas por membros da família e amigos, a vida cotidiana dos Manzoni. A correspondência vai de 1762 a 1907: entrelaçada com história familiar, se desenrola a ocupação napoleônica, o restabelecimento da hegemonia austríaca e as batalhas da unificação e independência italiana.
O livro começa com a infância infeliz de Giulia Beccaria, seu casamento com o conde Pietro Manzoni e o nascimento do filho Alessandro, na verdade fruto de um caso extraconjugal.
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Giulia consegue separar-se e passa a viver em Paris com Carlo Imbonati, onde, cercados de amigos e em um ambiente cosmopolita, são felizes. Alessandro, enviado para um colégio interno, não aparece na história até ter 19 anos, quando vai morar com a mãe e se enamora por ela e por tudo que a cerca, a cidade, seus amigos, a memória do companheiro Carlo, que morrera pouco antes. Aqui termina o primeiro capítulo, “Giulia Beccaria”.
O seguinte, “Enrichetta Blondel”, abrangerá o período do início do casamento de Alessandro com Enrichetta, jovem calvinista, escolhida com a ajuda atuante de Giulia, que se converte ao catolicismo.
A partir de então, a mãe e o casal, já estabelecidos em Milão, passam a levar uma vida devotada à família e à religião. Fica difícil entender como uma mulher livre e nada ligada a sentimentos maternais, como Giulia, de repente transforma-se em uma avó dedicada, com alegrias e medos pautados pela Igreja.
Uma das características mais interessantes do livro é exatamente o jogo de luzes e sombras referido por Ginzburg. Não só os personagens principais se alternam, brilham e se tornam opacos, como a visão que temos de suas personalidades e vidas também se modifica de acordo com o tempo que passa, quem escreve e para quem se escreve.
O trio de carolas se transmuta em uma família feliz, com o nascimento de um filho depois do outro, até chegar a oito, a casa cheia de afazeres do dia a dia, relatos de viagens às cidades litorâneas, à Toscana, amigos hospedados na grande casa em Brusuglio, próximo a Milão e as horas de trabalho de Alessandro no que viria a ser sua grande obra, Os noivos.
Obra que, propriamente dita, quase não é mencionada. Não se comenta seu enredo, a troca de correspondência em que, certamente, o autor discutiu a narrativa, sua evolução, dúvidas e percalços. O que sabemos é que ele passa muito tempo escrevendo e de sua pesquisa incessante sobre as diferentes maneiras e grafias de se falar e escrever o italiano. Sabemos do sucesso estrondoso de Os noivos, e da consideração que o autor passa a ter em todo o país.
A felicidade da infância cede espaço aos casamentos dos filhos, alguns felizes, outros desastrosos, às agruras das guerras, à morte de Enrichetta e ao casamento com Teresa Borri, às suas desavenças com os enteados, à falta de dinheiro, aos netos, muitos ceifados por doenças lentas, cartas tristes, mortes anunciadas, outros saudáveis e divertidos, as frases de crianças repetidas com gosto pelo avô, à miséria final de dois filhos homens, à independência italiana e ao posto de senador aceito pelo escritor, à velhice de Alessandro Manzoni.
As cartas são, na sua maioria, muito bonitas, bem escritas, com imagens lindas de uma vida tão distante da nossa em seus hábitos e forma de se relacionarem, e tão próxima de cada um de nós: vidas de mulheres, homens e crianças que se desenvolvem no mesmo tempo incessante que também nos carrega.
Salvatore Nigro, autor do prefácio da edição brasileira, define este como um romance-conversação que prescinde da ficção.
Reescrita
Carta de Ginzburg, de 1983, a Il Giornali, contestando que ela admitira ter reescrito as cartas: “A senhora Tiziana Abate confunde pirilampo com lanterna. Não confessei nada, pois não tenho nada a confessar. Disse apenas que transcrevi as cartas a mão, para ter a impressão de escrevê-las eu mesma. (…) As cartas são autênticas e não toquei nem substituí uma sílaba”.
Tão significativo quanto a negação da invenção é a sua ação de reescrever as cartas a mão, dar a própria caligrafia a palavras alheias. Natalia Ginzburg não modifica em nada palavras que, no entanto, passam a ser suas. Daí a capacidade de o romance, composto basicamente de documentos, ser tremendamente tocante, fluir e nos envolver.
No envio do livro à editora, recomenda ao departamento técnico “que o texto e as cartas sejam impressos no mesmo corpo, e não as cartas em corpo menor, como se costuma fazer.” As palavras da autora e das cartas não se misturam, os documentos sempre aparecem entre aspas e se menciona seu autor, mas têm o mesmo peso narrativo, as palavras das cartas são, elas mesmas, a história.
O sentido do trabalho da autora é a especificidade das palavras de cada missivista e memorialista que se manifesta na diferença do ritmo, na escolha do vocabulário, na sintaxe e na maneira mais camuflada ou aberta de dizer o que diz inclusive nas palavras que não diz. A trama comovente de Natalia Ginzburg organiza e dá brilho a estas diferenças.
Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.