Literatura,

Esperanças no futuro que teima em não vir

Novo romance de Luiz Ruffato abarca cem anos de um Brasil em permanente estado de decomposição

06dez2022 | Edição #65

É em um permanente estado de espera que vários personagens habitam a história da literatura, como o Don Diego de Zama, do argentino Antonio Di Benedetto, ou o tenente Drogo em O Deserto dos Tártaros, do italiano Dino Buzzati, para não mencionar aqueles condenados à morte mesmo tendo suas vidas reguladas como mecanismos de máquinas, como Josef K. de O processo, de Kafka. Não por acaso, em O antigo futuro, novo romance de Luiz Ruffato, o pai de Abramo, Giovanni, após a chegada da família Bortoletto ao Brasil no final do século 19, diz que para nós “não há futuro”, ecoando a frase kafkiana “Há esperança, mas não para nós”.

Mas os quatro personagens-pivôs do livro de Ruffato operam de modo contrastivo. Eles não ficam à beira-rio como Don Diego, sempre pronto para partir, mas sem nunca fazê-lo; ou Drogo, encastelado em um forte de prontidão para a guerra que não vem. As quatro gerações retratadas na obra do escritor mineiro procuram colocar em funcionamento sua vida e a de suas famílias em um Brasil desigual e cheio de promessas não realizadas por meio de elos em uma corrente vista pelo retrovisor. A obra é construída em partes decrescentes, da quarta à primeira, enquanto os capítulos se sucedem em ordem crescente, de um a cem, em um espelhamento sobre a dificuldade de formalizar a organização da sociedade brasileira.

As histórias dos Bortoletto correm ao reverso, a começar por Alex, filho da quarta geração, que migra para os Estados Unidos para ajudar a família em São Paulo, onde um duplo homicídio a esfacelou. No pórtico de cada divisão da obra, lê-se a localização e a data, estabelecendo-se, assim, um presente que mira para trás e atando as pontas dos antepassados mais diretos para dar sequência ao texto e a seus deslocamentos. O dia presente de Alex, Somerville, 6 de agosto de 2016, coincide com o mês da votação para o afastamento da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em um processo que culminará com a vitória da extrema direita dois anos depois. Alex é taciturno, nada sociável e lembra-se sempre do pai Dagoberto. Os curtos capítulos, todos nomeados, funcionam como cápsulas para narrar a história individual e coletiva, com o último deles designando um tempo verbal em diálogo com o oxímoro no título do livro. Nesse primeiro caso, futuro do presente.

Alex conecta-se com o pai, cuja perspectiva de fala e localidade é São Paulo, 8 de outubro de 1994, denominação notável para as constantes mudanças em busca de melhores oportunidades que se impõem ao longo da obra e novamente a carregar na data outra esperança: o fim da inflação e a estabilidade econômica resultantes do Plano Real. Dagoberto é funcionário de fábrica e nasceu em Cataguases, cidade da Zona da Mata mineira. Com um pé no presente e outro no passado, ele se recorda da infância e do doloroso rito de passagem pelo Exército, mas sobretudo do pai, Aléssio, e do súbito desaparecimento da mulher com quem se casou e teve filhos.

Saga às avessas

O esfacelamento e a dispersão tão característicos nas famílias brasileiras de baixa renda acompanham a trama sempre esfiapada na qual cada um erra sem horizonte de reconciliação, em uma impossível falta de elos, especialmente nos retalhos das memórias, frestas pelas quais o leitor vai sabendo de outros familiares e de pessoas que os cercam. É o caso de Dagoberto na parte dois, Cataguases, 7 de fevereiro de 1967, durante a ditadura militar, no ano que antecede o endurecimento do regime, em que as vozes políticas se calam. Mas engana-se o leitor ao pensar que os acontecimentos históricos são esmiuçados no romance: são antes marcos temporais para a saga às avessas dos Bertolotto, refletindo nos títulos frequentemente em tom de ironia, como “Terr’adorada” e “Grandes esperanças”. Ou ainda na ordem baixada pelo Estado Novo proibindo falar japonês, alemão e italiano em território nacional após o rompimento do Brasil com o Eixo. São frinchas da história maior que têm efeito deletério na colônia, tornando ainda mais distantes os liames com a tradição e o pertencimento.

Outro exemplo dessas brechas corrosivas, em que a alteridade dessas vidas desventurosas poderia respirar gotas de esperança, é a da participação de Dagoberto no grupo católico ligado à Teologia da Libertação, algo impensável para seu pai Abramo, já morto, mas presente nas entranhas do filho. Esse bloco termina com o tempo verbal futuro do subjuntivo, engrenando algo que irá acontecer, algo a embutir qualquer promessa de tempos melhores, mas que, na leitura ao revés, sabemos que não há.

As quatro gerações retratadas tentam colocar em funcionamento sua vida em um Brasil desigual

Na última parte, Rodeiro, 6 de agosto de 1916, completa-se o arco de cem anos abarcado pelo romance. Trata-se da chegada de Abramo com sua família à terra da promissão, desde a pequena cidade próxima a Pádua até Gênova e, em condições abjetas, a travessia do Atlântico na terceira classe de um navio. “No entanto, o passado tocaiava Abramo, como um cão pronto a morder-lhe os calcanhares.” Abramo é o último elo com os antepassados italianos e, na roça onde vive, relembra a vida nos campos peninsulares e seu pai, Giovanni — nome que o dono das terras na qual tem sua lavoura abrasileira para João —, submetido a um regime de quase escravidão. Não por acaso, a última lembrança do pai moribundo apresenta-se no capítulo “Futuro”, como se a ferida aberta e infecionada pelo golpe da enxada fosse a primeira das muitas cicatrizes deixadas para as próximas gerações.

Desde Eles eram muitos cavalos e Inferno provisório até Verão tardio, Ruffato colocou de pé um projeto literário raramente visto no Brasil: a construção panorâmica de parte da população brasileira afligida pela falta de oportunidades. Esse ciclo se encerrou. Então como pensar em O antigo futuro nessa arquitetura? Talvez como a condensação dos livros anteriores sob o ponto de vista de uma única família. Ou, o mais provável, como o acerto de contas com um país, desde suas origens, em permanente estado de decomposição e com suas esperanças atiradas no futuro; em um futuro que teima em não vir.

Quem escreveu esse texto

André Nigri

Jornalista, crítico literário e escritor, é autor de Paralisia (Reformatório).
 

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.