

Literatura,
Caramelo espiritual e revolucionário
No livro vencedor do Pulitzer, Richard Powers curva a forma literária para retratar a essência de uma floresta e a força de uma rede interconectada
01abr2025 • Atualizado em: 31mar2025 | Edição #92A trama das árvores, de Richard Powers, vencedor do Pulitzer em 2019, chega ao Brasil acompanhado de superlativos. O crítico Adam Grener, da Nova Zelândia, descreve o romance como o “Guerra e paz no Antropoceno”. A canadense Margaret Atwood o define como uma espécie de Moby Dick dos dias atuais. No Brasil, poderíamos compará-lo a Os sertões.
As atribuições não se devem somente à dimensão física do romance, com suas mais de seiscentas páginas, enfrentadas de forma corajosa pela tradutora Carol Bensimon, mas também pela magnitude da proposta literária: tratar de seres muito antigos. Powers elegeu homenagear a força das árvores no livro, que está sendo adaptado para uma série da Netflix por David Benioff e D. B. Weiss (criadores de Game of Thrones) com a colaboração de Hugh Jackman.

Com a proporção de uma sequoia, a obra precisará de muitas pessoas para abraçá-la, uma trama de histórias individuais — cujos destinos são atrelados a árvores — desprovida de protagonista único, tecendo uma rede interconectada de vida. Powers curva a forma literária para conceder a dimensão de algo difícil de retratar: a essência de uma floresta, com suas interrelações e magnitudes. Para a crítica brasileira Fabrícia Walace, o autor capta a “urgência de uma literatura que valoriza a conexão intrínseca entre todos os seres vivos”.
Powers nos devolve a ideia de beleza e nos oferece senso de propósito e reconforto crítico
O livro possui uma estrutura já desenhada no sumário: inicia-se com “Raízes”, depois temos “Tronco”, “Copa” e, ao final, “Sementes”. O título em inglês, The Overstory, alude ao que a botânica vai denominar de “dossel florestal”, o estrato superior das florestas, um termo que originalmente já contém a palavra “story” dentro.
Em “Raízes”, temos narrativas fechadas, quase uma sucessão de contos. A primeira narrativa, de Nicholas Hoel, reconta uma história familiar do século 19 ao 21, marcada pela imigração norueguesa e irlandesa e pela dizimação de castanheiras, “a sequoia-vermelha do leste”, cujas castanhas ofereciam banquetes gratuitos para pessoas empobrecidas. Essas árvores passaram por uma extinção massiva, causada por um fungo. Uma das que sobreviveu foi plantada na propriedade da família Hoel. Essa castanheira solitária passou então a ser fotografada por novas gerações, tecendo uma relação inseparável entre ela e os infortúnios da família.
Outras personagens são apresentadas, trazendo a história dos Estados Unidos e, claro, de muitas árvores. Mimi Ma, filha de imigrantes, é marcada pela ascendência da família, vinda da China pela tríade arborícola do “Lótus, a árvore na fronteira do passado”, o pinheiro do presente e o “Fusang, o futuro, uma amoreira mágica do extremo leste que guarda o elixir da vida”. Adam Appich, um garoto apaixonado pela observação dos olmos atingidos por pragas, termina sendo admitido na faculdade por sua inteligência peculiar, “se transformando em um ácer — familiar, franco, fácil de ser identificado, sempre pronto para sangrar açúcar”. O casal Ray Brinkman e Dorothy Cazaly: ele, com seu coração de carvalho; ela, como uma tília, “tão diferente de um carvalho como uma mulher e um homem”. Douglas Pavlicek, que sofreu uma queda de avião na Guerra do Vietnã mas foi salvo por ter seu paraquedas enroscado em uma figueira, árvore sagrada maior do que certas aldeias.
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Fechando o cortejo de personagens, temos Neelay Mehta, cadeirante com ascendência indiana, que faz de árvores seus oráculos e com quem acompanhamos o desenvolvimento das big techs; a engenheira florestal Patricia Westerford, com a dramática experiência acadêmica de ter sua pesquisa sobre a comunicação entre as plantas desacreditada (hoje essa teoria é aceita, como relatam os livros do botânico Stefano Mancuso e do engenheiro florestal Peter Wohlleben); e Olivia Vandergriff, uma estudante que sofre uma morte súbita e retorna ao mundo.
O tema da metamorfose paira nessa primeira parte. Há citações diretas a Ovídio, incluindo passagens mitológicas de pessoas transformadas em vegetais, como Dafne transformada em loureiro, Ciparisso em cipreste e Orfeu com pés de raízes. A partir de “Tronco”, que começa com o renascimento de Olivia, ocorre uma compressão espaço-temporal, na qual as personagens começam a se aproximar, em uma corrida para o Oeste. Agora, não mais para dizimar povos originários e búfalos em pradarias, como no século 19. Em A trama das árvores, as personagens unem-se para dar a vida na proteção de um bosque.
Inversões
No romance, as peças do quebra-cabeça se reúnem. O livro da engenheira florestal, A floresta secreta, é lido por outras personagens. Seres invisíveis inspiram desejos. Sem protagonista central, todas as pessoas e árvores são relevantes, uma inversão das narrativas ocidentais modernas.
É com essa inversão que a força da forma literária alcança sua plenitude, em um romance delicioso de ler, um caramelo espiritual e revolucionário. Powers parece aplicar a “Teoria da Bolsa de Ficção”, ensaio de Ursula K. Le Guin, no qual se sugere que as histórias, em vez de heróis, precisam ter pessoas. O escritor vai além, colocando os seres vegetais em primeiro plano, contaminando a própria folha de celulose que segura a narrativa.
Nessa ode às florestas, não esqueceu de retomar o verdadeiro sentido de “abraçar árvores” — quando ativistas indianas se agarraram aos troncos para salvar florestas nos Himalaias em 1970 — nem do heroísmo de Chico Mendes e de pessoas anônimas que morreram em defesa desses seres.
A partir de referências, de Jorge Luis Borges a Rumi e de Walt Whitman a Wang Wei, o autor nos convida a pensar nossas relações com esses seres imensos, nos devolvendo a ideia de beleza e de encantamento com o mundo. Passa por árvores de culturas ancestrais até as atuais oito mil espécies amazônicas em risco de desaparecer.
Assim como em seu livro Deslumbramento (Todavia, 2023), Powers nos oferece um senso de propósito, um acalanto espiritual e reconforto crítico nesses tempos de emergência climática, cada vez mais aguda.
Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025.
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