Flip, Literatura,

Caracas distópica

Ficção sobre a Venezuela contemporânea mostra um país dividido e irreconciliável

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

A Venezuela é um país dividido. Entre quem defende a revolução e quem se opõe a ela, entre quem consegue comida e quem tem fome, entre quem foi embora e quem ficou, entre quem tem o poder de fogo e quem é alvo. E as divisões só parecem ter se aprofundado com o passar dos anos. Esse país sem textura, que estamos acostumados a consumir nos noticiários lendo declarações de políticos antagônicos, ou em crônicas de protestos com citações de um ou outro grupo, é o país que Noite em Caracas, primeiro romance da venezuelana Karina Sainz Borgo, apresenta. Uma Venezuela formada por “nós” e “eles”. 

A história de ficção que incorpora episódios e personagens reais é quase uma narração distópica de Caracas, a capital venezuelana separada do Caribe por uma cordilheira exuberante que marca o norte da cidade. E não porque o momento presente não seja suficientemente duro, sombrio e faminto, mas porque na crônica de Sainz Borgo não resta nem um fio de esperança ou de futuro. “Já não éramos um país, éramos uma fossa séptica”, reflete no meio da história a protagonista Adelaida Falcón. Em se tratando de Venezuela, uma pergunta recorrente nesses dias é “qual é o fundo do poço?”. “Já não existe mais fundo. Nunca vamos conhecer o limite desta desgraça”, responde, de um futuro ainda mais trágico, uma vizinha de Adelaida. 

O romance começa com o enterro da mãe de Adelaida, detentora do mesmo nome da filha e que morreu de câncer. Sem irmãos e sem pai, a protagonista nos leva a uma viagem pela dor da ausência, pelas lembranças de infância num povoado do litoral central e por uma Caracas que não é mais. Após a morte da mãe, Adelaida, que se sente como o último elo de uma corrente familiar, tem de confrontar a cidade que ela despreza e pela qual se sente desprezada. Funcionária freelancer de uma editora estrangeira, fica ainda mais desnorteada quando seu apartamento é invadido por um grupo de mulheres que aproveita o poder obtido pelas conexões com o aparato estatal para impor uma lei própria. 

Por um acaso da história, Adelaida, aos 38 anos, consegue uma oportunidade de renascer em uma outra vida: a de uma vizinha, quase dez anos mais velha, que morre repentinamente. Filha de espanhóis, a falecida Aurora Peralta oferece sem querer uma nova identidade, uma família e um lar em Madri para Adelaida.

Raiva

A autora, que mora na Espanha desde 2006, tempera seu relato com frases belíssimas e bem trabalhadas que descrevem traços característicos da sociedade venezuelana e de sua mudança. “Todos nós nos transformamos em suspeitos e vigias, disfarçávamos a depredação sob a solidariedade”, pensa Adelaida, quando uma vizinha tenta tirar proveito dela.

A obra também relembra que a Venezuela no pós-guerra recebeu e integrou milhares de europeus, deixando gerações que, décadas depois, refizeram os passos dos seus pais e avós para fugir do colapso do país caribenho. Também fala da frivolidade de um país onde “ninguém queria envelhecer nem parecer pobre”, e que por anos tinha sido “uma declaração de intenções”, sintoma de um futuro que nunca chegou. 

O relato é também uma homenagem a um país de mães solteiras, de viúvas e de filhas, de mulheres fortes e sobreviventes. Mas, à medida que a crônica de Adelaida avança, instala-se a amargura. Com inúmeras alusões à morte, a tinta de sua caneta parece ter sido extraída do fígado. “Agora tudo estava morto: minha mãe e meu lar. Também o país”, conclui, por fim, quando seu apartamento é invadido pelo grupo de mulheres comandado por Marechala, que controla um esquema de revenda de alimentos originalmente importados pelo governo para enviar às comunidades em troca de apoio popular.  

A protagonista fala de uma Venezuela que, a partir da miséria econômica, foi destruída moralmente

A protagonista fala de uma Venezuela que, a partir da miséria econômica, foi destruída também moralmente. Não há crianças, ninguém nasce, todo mundo morre, física ou emocionalmente. Há raiva nela e na cidade. A narrativa avança pela fúria com que os “filhos da revolução” tratam os cidadãos de um país que esfarelou após promessas não cumpridas e que agora definha sob a herança do ocaso do Comandante Eterno. 

Aos poucos a história fica centrada na falta de humanidade dos outros. Inclui relatos das prisões venezuelanas onde imperam a repressão e a tortura. Mas, para quem tem acompanhado esses depoimentos, o relato da violência de Noite em Caracas parece justamente isso, uma parte factual literal que destoa do ritmo emocional do sofrimento próprio de Adelaida. 

É também na apresentação dos dois países, o “nosso” e o “deles”, que a prosa de Adelaida padece. A construção desses “outros” chega a ser classista e racista, até, pois eles são descritos como feios, gordos, malcheirosos, de pele morena, gente que mal sabe ler, escuta reggaeton, é vulgar, despreza a literatura e não tem escrúpulos. Já Adelaida, o “nós” — lado seguido pelos leitores sem alternativa —,  é culta, delicada, uma vítima forçada a quebrar seus códigos morais para sobreviver.

A Venezuela de Adelaida parece irreconciliável, ao ponto de que para “nós”, “os bons”, só há uma saída: o exílio. “Me tiraram tudo, até o direito de gritar”, lamenta a jovem quando tem de escutar em silêncio as mulheres de Marechala destruírem o que resta de seu lar. “Amaldiçoei, com meus dentes quebrados, o país que me expulsou e ao qual eu ainda pertencia, sem fazer mais parte dele”, prossegue, enquanto sofre a última das humilhações. 

Mas, além da representação estereotipada dos apoiadores e opositores da revolução, o livro deixa de lado o fato de que o país que pariu Adelaida, também pariu Marechala. Foi o ressentimento social o que, em parte, levou ao poder Hugo Chávez em 1998, iniciando a chamada “revolução bolivariana”. Chávez, o Comandante, nutriu-se durante anos dessa raiva e estabeleceu uma relação quase mística com seus apoiadores que finalmente se sentiam queridos, num país que agora os reconhecia. Mas, como diz Adelaida, a fome desatou ódios e medos. 

A crise econômica, produto de péssimas práticas administrativas, agudizada após a queda dos preços do petróleo em 2014, desvelou um país no qual a luta pela sobrevivência é diária, e no qual Marechalas e Adelaidas estão em lados contrários. Pode não ser este o objetivo do romance, mas a construção binária e estereotipada de um país com profundas feridas sociais é um ponto fraco da obra que tem o mérito de ser um dos primeiros — se não o primeiro — a falar da Venezuela contemporânea.

Quem escreveu esse texto

Paula Ramón

É correspondente da Agência France-Presse em São Paulo. Prepara o romance de não ficção Mãe pátria, sobre a Venezuela, seu país de origem.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.