Literatura,
As obsessões de Octavia Butler
Coletânea de contos e ensaios mostra o processo criativo da grande dama da ficção científica
01ago2020 | Edição #36 ago.2020O fato de Kindred: laços de sangue, de Octavia E. Butler (1947-2006), ter demorado quase quarenta anos para ser publicado no Brasil é reflexo de como obras de ficção especulativa produzidas por mulheres negras são desvalorizadas. Os gêneros especulativos (fantasia, ficção científica e horror sobrenatural) são majoritariamente escritos e protagonizados por pessoas brancas, principalmente homens. Esse é um dos motivos que tornam tão importante o trabalho que a editora Morro Branco vem fazendo ao traduzir os livros de Butler. Filhos de sangue e outras histórias é o novo lançamento da autora pela editora, e, apesar da espera, este é o momento apropriado para o público brasileiro lê-lo.
Octavia E. Butler é um nome importantíssimo quando falamos da produção afrofuturista estadunidense e da ficção científica como um todo. O afrofuturismo é um movimento criado na década de 1990 e pode ser encontrado em diversos campos artísticos, como a literatura, o cinema, a música e as artes plásticas. Quando o termo foi criado, as discussões iniciais já colocavam Butler ao lado de outros nomes essenciais para se pensar a produção de artistas negras/os nos gêneros especulativos.
Estabelecendo o conceito, o afrofuturismo está presente em obras de ficção especulativa de autoria negra com protagonismo negro e desenvolvimento da negritude como temática. As abordagens são construídas por meio de perspectivas não eurocêntricas e elementos que partem da experiência negra: cultura, história, estética, política, epistemologias etc. Por meio do exercício especulativo e imaginativo, o afrofuturismo procura não só resgatar o passado apagado da população negra, mas também questionar o presente e projetar futuros através de uma percepção cíclica do tempo.
Tais aspectos do afrofuturismo estão presentes na obra de Butler como um todo. Seus livros versam sobre a experiência de pessoas racializadas e sobre como a quebra de modelos estabelecidos na nossa sociedade pode ser ainda mais prejudicial para pessoas que já enfrentam opressões.
Apesar de dizer no prefácio que odeia escrever contos, Butler nos entrega histórias complexas e tocantes
Em Kindred, um dos romances mais importantes de Butler, a protagonista Dana viaja para o passado e retorna aos Estados Unidos escravagista. Por ser negra e mulher, ela fica sujeita às diversas violências da época, e a partir da experiência de deslocamento temporal marcada pelo corpo ela repensa seu conhecimento sobre a escravização e como esse sistema tem reflexos no presente. O deslocamento temporal transforma Dana de várias maneiras, mesmo ela sabendo que o período no qual viveu no passado não é suficiente para entender de fato os horrores da escravização.
A mudança e a forma como lidamos com isso é um tema central na obra de Butler, principalmente na duologia Sementes da terra, composta dos volumes A parábola do semeador e A parábola dos talentos, publicados no Brasil também pela Morro Branco. Apesar de abordarem um contexto distópico causado por consequências climáticas, os livros apontam para a possibilidade de construção de uma utopia. A esperança existe, mesmo com as opressões e violências cotidianas. Sementes da terra tem ambientação em um tempo que para Butler estava mais distante cronologicamente, mas para nós, em 2020, é algo mais próximo, palpável e perceptível em níveis assustadores.
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Os temas presentes em Kindred e Sementes da terra retornam, de certa forma, em Filhos de sangue. A coletânea é composta de sete contos, dois ensaios e comentários da própria autora sobre seus textos. São histórias sobre relações familiares, comunicação (ou a falta dela), corporalidade, religiosidade, doenças que afetam as pessoas, opressão, violência, contato com seres alienígenas e modificações de modelos sociais já conhecidos. Alguns desses temas aparecem mais de uma vez, fazendo com que os contos conversem entre si.
“Filhos de sangue”, que dá título à coletânea, é, sem dúvida, uma das narrativas mais importantes da obra. O conto ganhador do Nebula e do Hugo, considerados prêmios mais importantes para obras de fantasia e ficção científica, mostra humanos vivendo em um planeta dominado por seres alienígenas. Nesse contexto, os humanos são subjugados e usados como hospedeiros para a reprodução dos Tlics, seres de outro planeta. A grande questão é que o processo de nascimento é doloroso e pode causar a morte dos humanos. Conhecemos essa relação a partir da narração de um protagonista masculino que se prepara para engravidar de um Tlic. Nesse contexto conflitante, humanos e Tlics dependem uns dos outros para sobreviver.
Obsessões
Entre os dois ensaios da coletânea, “Obsessão positiva” é o que merece destaque. Nele, Butler fala sobre sua relação com a leitura e a escrita, sobre ter sido uma pessoa introvertida e sobre como podemos utilizar a obsessão de uma forma positiva para projetar e alcançar objetivos. Por haver poucas entrevistas com a autora disponíveis na internet, é importante termos em português um texto no qual ela fala sobre seu processo criativo e sua trajetória como escritora.
Apesar de dizer no prefácio do livro que odeia escrever contos, Butler nos entrega histórias complexas, bem escritas e tocantes. Como em seus romances, ela utiliza as possibilidades que a ficção especulativa oferece e extrapola a realidade para criar situações acompanhadas de discussões relevantes sobre o nosso mundo. Ao acessarmos não só narrativas ficcionais, mas seus ensaios e comentários sobre os textos, podemos fazer conexões, descobrir referências e ampliar nossa experiência de leitura.
Por esses fatores, Filhos de sangue é um excelente livro tanto para quem não conhece o trabalho da autora quanto para os que já estão familiarizados com sua prosa. O conjunto da obra nos mostra, mais uma vez, que a escrita de Butler possui uma relevância atemporal e que suas temáticas e perspectivas são essenciais para compreendermos melhor nosso presente e refletirmos sobre o futuro que estamos construindo.
Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.