Literatura,

Águas que banham um caminho literário

Livro epistolar narra vida (in)comum de Velia Vidal, que transformou comunidade por meio dos livros

01set2023 | Edição #73

De 2015 a 2018, a escritora afro-colombiana Velia Vidal se correspondeu com um amigo. Passados dois anos de trocas de mensagens de texto, áudios e fotografias, pensaram em fazer alguma coisa com tantas palavras compartilhadas. Em 2020, nasceu Águas de estuário, livro epistolar sobre as águas que banham as escolhas de uma jovem mulher afro-colombiana, escritora e promotora de leitura do Chocó. O livro chega ao Brasil sob o Selo Sueli Carneiro, da Editora Jandaíra, coordenado pela escritora e filósofa Djamila Ribeiro, que na apresentação fala da importância da identidade amefricana encontrar um projeto editorial político no país.

O Chocó é definido por Vidal como “a grande selva de dois mares. Um dos cantos mais biodiversos do mundo, que teve sua beleza maculada por um grande erro histórico: a escravidão”. Trata-se de uma região marcadamente negra, com origem indígena, co-habitado por mestiços e filhos diretos de África. “Ao juntarem-se aqui, na terra da água, da chuva, dos mares, da umidade, foram fertilizados para dar lugar a uma cultura particular: a cultura chocoana”, diz a autora.

Na primeira correspondência, Velia Vidal informa que não suporta mais viver longe de suas águas e de suas origens. Está decidida a não adiar mais os sonhos de viver perto da avó no Chocó, ter uma casa autossustentável e contribuir para que sua comunidade seja leitora de livros. Ela e o marido vão deixar a cidade e começar uma vida nova em Bahía Solano; mudar de paisagem e seguir como o Pacífico, com fluxos e volumes de ondas que se alternam à calmaria.

A autora coloca a literatura no centro de sua vida e da vida de crianças, adolescentes e adultos

O foco das correspondências é a vida (in)comum dessa mulher negra que busca tranquilidade para se descobrir escritora e promotora de leitura e transformar as relações de uma comunidade com os livros. A identidade do destinatário não é explicitada. Depois de algumas cartas, intui-se que é do gênero masculino, que vive numa cidade colombiana e é de poucas e certeiras palavras. Percebe-se que os dois são unidos por vínculos profundos de amizade e confiança e que têm em comum o universo do livro e da leitura. O tom de diário aproxima e constrói cumplicidade com quem lê e vai se informando sobre uma região próxima geograficamente do Brasil, mas distante pela falta de conhecimento sobre a paisagem, a cultura, as pessoas e as literaturas da América Latina.

No livro de Vidal há um mapa do departamento do Chocó com os seus municípios, favorecendo os deslocamentos rios adentro. Leitores entram em contato com uma Colômbia para além das Farc, e agregam conhecimentos ao que se sabe sobre as Bibliotecas Parque de Medellín como estratégia cultural para a redução da violência. Vidal vai mais fundo nas ações comunitárias e populares de leitura.

Ao descobrir o seu lugar e apresentá-lo ao amigo, a autora coloca a literatura no centro de sua vida e da vida de crianças, adolescentes e adultos de uma comunidade rural. O território se torna sua referência no desenvolvimento de ações de leitura, e Vidal organiza a primeira Festa da Leitura e da Escrita do Chocó, a Flecho.

Entre o mar e a selva

Há muitas similaridades com o que ocorre no universo de mulheres negras empreendedoras, ativistas de várias causas sociais, que decidem criar ações transformadoras em seus territórios. Vidal relata a escolha de seguir o coração, que pulsa na promoção do livro e da leitura, entre o mar e a selva do Chocó. E instiga quem a lê a fazer o mesmo: escolher.

Ao trocar um emprego pela atividade, torna-se a seño Velia, a professora Velia, uma mediadora de clubes de leitura, e decide criar seu próprio espaço: o Motete, palavra que designa “um cesto como o usado pelos indígenas para carregar alimentos, sustentado por um cipó em volta da cabeça”. Vidal explica: “A vida toda os motetes foram usados para carregar comida para o corpo […]. Agora estamos propondo enchê-lo de comida para a alma: arte, cultura, livros”.

No Motete, além dos clubes de leitura, desenvolvem-se ações voltadas à alimentação, geração de renda e mobilização de mulheres negras. A transformação de quem lê vai se dando com o enraizamento das práticas na comunidade, no entrelaçamento das vidas das pessoas.

Vidal se emociona ao ser reconhecida pelas leituras que fez. É assim ao contar de uma menina que lembrava da sua voz lendo O ônibus de Rosa, sobre Rosa Parks, a mulher negra que enfrenta a segregação racial americana ao se recusar ceder o lugar a um homem branco. Ao escrever para o amigo, Vidal descreve a alegria:

Foi uma epifania, como se em um instante se revelassem diante de mim todos os efeitos de uma história bem escolhida, de uma história lida com amor, de uma história que tem tudo a ver com a pessoa.

Há, também, registros de momentos tristes, como a morte de uma criança frequentadora do clube de leitura. As águas do Pacífico se misturam às de Vidal e da sua gente. 

Todo dia líamos uma história que nos fizesse pensar sobre a vida e a morte, sobre as tristezas e as dores quando os outros se vão. No grupo estavam a irmã, os primos e os amigos de Brayan.

Vidal tem o cuidado de não se apresentar ao amigo (nem para ninguém) como exemplo de mulher negra forte que aguenta tudo. Muitas vezes fala do cansaço que é empreender, batalhar por recursos para manter os projetos, sem ignorar questões pessoais, como a relação difícil com o pai, os problemas de saúde, os desejos, as trocas de afeto com outros homens. Seu corpo está inteiro no texto, aproximando a nudez da revelação dos escritos: “Talvez, ao me desnudar nas letras, também desnude a essência disso e encontre um prazer a mais nessa bela liberdade”.

Suas histórias são encharcadas de vida. As cartas revelam uma ativista que não tem receio de compartilhar seus acertos, propósitos e contradições. Águas de estuário deve circular entre mediadores de leitura e entre aqueles que acreditam na força do diálogo na construção de saberes. 

Quem escreveu esse texto

Bel Santos Mayer

É autora de Parelheiros idas e vi(n)das: ler, viajar e mover-se com uma Biblioteca Comunitária (Solisluna).

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.