Literatura,
A língua do “e” de Perec
Experimento literário dos anos 60 construído com apenas uma vogal é mescla cômica entre romance policial e erótico
01set2023 | Edição #73Acaba de ser publicada a tradução, até então inédita no Brasil, de Qe regressem (Les Revenentes), de Georges Perec. O livro é uma mescla cômica de romance policial e erótico, em que gangues planejam roubar joias num enredo rocambolesco situado na Inglaterra, com fetiches escandalosos e conluios. Mas nada é mais inusitado que a regra que Perec usou para escrever (respeitada de cabo a rabo pelo tradutor): em Qe regressem, só se usa a vogal e. A audácia deve ser situada num contexto que rebate lugares-comuns em torno da criação literária.
Perec integrou a Oficina de Literatura Potencial (Oulipo), grupo fundado na França em 1960 por Raymond Queneau e François Le Lionnais, ambos fascinados por matemática, xadrez e experimentos literários. Queneau estava sem inspiração para compor um livro de poesia. Para solucionar o problema, reuniu-se com Le Lionnais em jantares regados a vinho, nos quais eles decidiram que a escrita deslancharia com regras pré-estabelecidas. Mais tarde, Georges Perec, Marcel Duchamp e Italo Calvino foram cooptados pelo núcleo, que existe ainda hoje, com nomes como o poeta Jacques Jouet, a artista visual Clémentine Mélois, a ex-dj e professora de literatura Anne Garréta e Hervé Le Tellier, vencedor do Goncourt de 2020.
É a palavra, ou melhor, a letra, que segura o leme e pilota a história
Em vez da aderir à liberdade irrestrita na criação, a Oulipo inventa ou recupera regras advindas de fórmulas matemáticas, da tradição clássica e até da linguagem de algoritmos. Um exemplo é O sumiço, de Perec, romance de 1969 que é um lipograma (texto sem uma ou mais letras do alfabeto) e aborda as consequências do desaparecimento da letra e. Três anos depois, o autor publica Qe regressem, um monovocalismo em e. Zéfere, o tradutor desses labirintos, foi premiado por sua versão de O sumiço. Agora, o leitor de língua portuguesa pode saborear Qe regressem sob a sua técnica.
Esse leitor talvez desconfie da viabilidade de uma história com uma só vogal — que não seria mesmo viável sem alguns dribles nas normas ortográficas, como no título. Qe regressem tem a síncope do u, já inaudível na pronúncia, na conjunção que, numa acrobacia usada no original e aprovada em sessão da Oulipo. É curioso como a trapaça é negociada em assembleia pelos integrantes do grupo, atribuindo uma espécie de ética literária a seus jogos.
Léxico
A tradução tem uma nota introdutória na qual Zéfere adverte: “Persevere; De repente, percebes qe nem é reles este vergê”. Além de apelar à insistência do leitor, ele usa vergê, um tipo de papel, como metonímia para o livro. O recurso de nomear as coisas por figuras de linguagem, dentre outras manobras que expandem o senso comum das palavras, é abundante.
Assim, o próprio léxico conduz o enredo. Em vez de um plano ideal do romance que o autor transformaria em palavra, é a palavra, ou melhor, a letra, que segura o leme e pilota a história. No início, aparecem sete Mercedes-Benz verdes. E a narrativa acontece na Inglaterra, talvez porque mais espaços possam ser ali nomeados: Temple Street, West End Street etc. O monovocalismo é um eixo que irradia suas possibilidades para a narrativa.
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Nos anos 60, proliferava na França o debate sobre a língua não ser mero aparato que transmite ideias com transparência, mas uma instância que modela as ideias. Intelectuais como Émile Benveniste, Jacques Lacan e Roland Barthes debatiam essa concepção, que deve ser levada em conta quando observamos as primeiras décadas da Oulipo.
Muitas adaptações foram necessárias para que o livro coubesse no português brasileiro. Uma das fundamentais foi a mudança do ponto de vista: o narrador Clément, no original, fala em primeira pessoa (je). O tradutor opta pela segunda pessoa do singular, um recurso raro porém já visto na literatura francesa moderna, em obras como Um homem que dorme, de Perec, e A modificação, de Michel Butor. Em Qe regressem, lemos: “Qem é Clément? Cê é Clément. És Clément. És descendente de qem Estelle descende e, de vez em vez, és peggete de Hélène”. Com a transição para a segunda pessoa, o tradutor ganha conjugações verbais como cartas na manga. E o g duplo evita o u da gíria peguete, duplicação que reaparece em berenggendéns, usada para falar de joias, mas, igualmente, de testículos.
Não seria a literatura um lugar de subversão da língua, com suas normas sociais embutidas?
A leitura em voz alta ajuda a avançar: os termos são transcritos da maneira como são ditos: cê, pê, éfe. A fala cotidiana é absorvida em amálgamas que vão dando corpo e fluidez às personagens. Além de Clément, convivemos com Thérèse Merelbeke, Bérengère de Brémen-Brévent, Mehmet Ben Berek. Essas personagens destilam palavras tão rebuscadas (recresces, refesteles) como baixas (fdp, merde, qecete). Lembra a boca suja de Zazie no metrô e os manifestos que Queneau escreveu em favor de uma grafia francesa mais próxima à oralidade. A gramática do francês foi estabelecida pela nobreza no século 17 e na origem dessas normas estava a manutenção de uma divisão de classes.
Em Qe regressem, o espírito oulipiano do tradutor de escrever sob regras — e, portanto, transcriar — é mais pertinente que buscar correspondências literais. Escrever com a regra do e é também traduzir um significado, o de espiar cantos empoeirados da língua, regiões intocadas das palavras. É um método de criação abundante, ao contrário da primeira impressão que as restrições em literatura possam causar. E chama a atenção o contraste entre o regramento da escrita e uma história que desvia, em tudo, do regramento social. Com o rigor da limitação em e, lemos blasfêmias e o contraponto desgovernado da instituição eclesiástica, em oposição à bienséance, o decoro na tradição francesa. O monovocalismo é tudo menos monótono.
Chegamos à face propriamente literária da obra de Perec. Não seria a literatura um lugar de subversão da língua esquematizada, com suas normas sociais embutidas? A literatura é um espaço em que é possível incluir variedade de registros e invenções em um idioma, surrupiando-o dos defensores do status quo, liberando sua condição mutável por meio do uso e das pessoas que transformam a língua. Esta, sugere Perec, é agregadora: oralidade, transgressões, rebuscamento e até estrangeirismos convivem em Qe regressem — que talvez possa ser compreendido no espírito de quem escala uma montanha pedra por pedra, porque a vista vale a pena. Persevere.
Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.