Literatura,

A confissão do fantasma

Ao narrar com coragem e afeto as suas lembranças de um pai dominador e racista, autora expõe a perversa violência colonial

01jul2018 | Edição #13 jul.2018

José Castello conta que, em novembro de 1974, quando tinha 23 anos e se iniciava no jornalismo, enviou para Clarice Lispector um dos exercícios de ficção que produzia, sem muita convicção, por aquela época. A resposta veio na forma de um telefonema em que a escritora, logo depois de se identificar, lhe disse: “Estou ligando para falar de teu conto. Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso” (Com os três rrr, Castello busca reproduzir algo da dicção singularíssima da autora).

Depois de um instante de silêncio, que deve ter durado uma inteira era geológica para o aspirante a escritor, Clarice prosseguiu: “Você é muito medrrroso. E com medo ninguém consegue escrever”. Em Água viva, publicado no ano anterior, Clarice já registrara essa noção: “É preciso coragem para escrever o que me vem: nunca se sabe o que pode vir e assustar”.

Não surpreende que, numa entrevista contida na primeira edição do Caderno de memórias coloniais, Isabela Figueiredo mencione, entre os seus dez livros de predileção naquele momento, Onde estivestes de noite, de Clarice. Com o Caderno, publicado em Portugal em 2009 e agora finalmente no Brasil, a autora encarna, como poucas e poucos, essa coragem da escrita, coragem de estar pronta para “o que pode vir e assustar”, ou, aqui, o que efetivamente veio e assustou, ou, ainda, o que não apenas já estava lá, mas que a engendrou (e mesmo assim, ou por isso mesmo, assusta): o pai, o país. 

Portuguesa nascida em Moçambique, neste livro, um dos mais honestos e, portanto, brutais relatos sobre a experiência colonial de Portugal na África, a escritora age como se a coragem não fosse apenas a condição indispensável de qualquer escrita relevante (sobretudo quando a matéria é traumática), mas também, a um só tempo, seu motor e seu combustível, ou seu coração — é precisamente isto, segundo o étimo, a coragem — e seu sangue.

Mas a coragem coloca-se aqui no lugar de um coração que falta, o coração do desterrado: “Manuel deixou o seu coração em África. […] Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures?”. Há algo de intrinsecamente expatriado em qualquer um de nós. Algo quer regressar — mas não pode, não tem aonde. Escrever é dar voz a esse exílio fundamental.

Não é este o livro de estreia de Isabela (em 1988, publicou Conto é como quem diz). Foi, contudo, o primeiro a conquistar reconhecimento crítico amplo, assim como a suscitar reações negativas de leitores que, tendo passado por experiências semelhantes, preferiram esquecer os detalhes comprometedores. Isto é: preferiram esquecer justo o que ela punha, agora, no centro do relato, e não como sobranceira acusação dirigida aos outros, mas começando — e em alguma medida terminando — na figura avassaladora do próprio pai, que fugira da pobreza para ganhar a vida como colono em Moçambique, fazendo-se eletricista e cercando-se de trabalhadores negros que tratava com feroz racismo. 

Atitude que, assinala a autora, estava longe de ser exclusiva dele, sendo, na verdade, a forma básica da existência colonial, que dependia da discriminação e da violência contínuas. No Caderno, Isabela fere de morte o mito outrora caro ao Estado português, mas ainda hoje corrente em determinados setores da população do país, que é o mito do colonialismo benfazejo. 

É preciso coragem para escrever com todas as letras que a capital moçambicana, hoje Maputo, então Lourenço Marques, era, nos anos 1960 e 70, “um largo campo de concentração com odor a caril”. E note-se que toda a ambivalência da situação colonial, mas também toda a complexidade da visão e da escrita desta magistral escritora, estão aí resumidas: na coexistência entre o “campo de concentração” e o “odor a caril”, entre o horror e a delícia, entre o inferno (para os negros) e o paraíso (para os brancos). 

Mas a situação paradisíaca tem dia para acabar: depois do 25 de abril que libertou Portugal da ditadura e, em seguida, os territórios colonizados na África, logo Moçambique se transforma também em inferno para os brancos, com a independência desmontando a estrutura colonial e trazendo as previsíveis vinganças.

Como disse o crítico português Pedro Serra, estamos diante de uma “escrita que vive da e na problematização do gênero autobiográfico” e que, para isso, tem de se equilibrar “no afiado gume de todo o exercício de memória individual e coletiva”. Mas, antes e depois disso, estamos diante de uma escrita que põe em questão, de modo incessante, a própria escrita, o que é também dizer: uma escrita que, partindo das “memórias”, e portanto de uma coragem de confrontar e dizer a verdade, rejeita, porém, o caráter documentário e aspira, muito claramente, à condição de literatura

Isabela fere de morte o mito outrora caro ao Estado português, mas ainda hoje corrente em determinados setores, que é o mito do colonialismo benfazejo

Isto é, aspira àquele ponto em que a verdade, ao fazer-se linguagem, revela-se não apenas parcial (nomear é recortar, é eleger uma perspectiva), mas ambígua. Uma ambiguidade ou ambivalência, que antes de tudo, põe a nu a instabilidade inerente a cada figura do texto, dos personagens à narradora — que aqui, como em todo discurso autobiográfico, coincide com a personagem supostamente principal, que, porém, neste mesmo jogo, logo cede a vez ao verdadeiro protagonista, o pai. 

A crítica brasileira Anita Martins Rodrigues de Moraes, com razão, já sugeriu, a partir do que Antonio Candido disse dos drummondianos Boitempo e Menino antigo, que estamos diante de uma autobiografia que se torna “uma espécie de heterobiografia”. Candido esclarece o sentido dessa auto-heterobiografia: “História simultânea dos outros e da sociedade; sem sacrificar o cunho individual, filtro de tudo”.

Mas (friso), para além de toda história, há a literatura: de fato, nas “Palavras prévias”, antepostas à narrativa quando o livro passou a ser publicado pela editora Caminho, a partir de 2015 (e agora retomadas na edição brasileira), Isabela observa que, para além do seu compromisso com uma genuína recriação do ambiente social e natural moçambicano, “com os seus ruídos, cores e odores”, “o livro também ficciona para dizer a verdade, esse outro grande paradoxo da literatura”.

O primeiro paradoxo consistiria no fato de que “os choques de uma vivência” só são ultrapassados quando esta é trazida à tona, “desenterrando-a, revolvendo os seus restos”. Em suma: ficção e arqueologia como desvios enriquecedores da autobiografia e da história. E por que se escava? Por que se ficciona? Porque são modos de não se deixar paralisar pela incompreensão do que se viveu: “Não ter compreendido. Tudo começou aí”. Isto tem consequências éticas, para a escrita, que são também consequências formais.

Trata-se de um livro que, em consonância com a ideia de caderno (isto é: de escrita em ato) presente no título, se abre e se fecha várias vezes, sempre recomeçando já antes do início, sempre relutando em acabar de uma vez por todas, e que, não por acaso, de uma edição a outra vem se modificando — comparo a versão brasileira, da editora Todavia, com a última portuguesa, da editora Caminho, mas também com a primeira, igualmente portuguesa, da editora Angelus Novus. 

Esta primeira, de 2009, encerrava-se, suplementarmente, depois do suposto fim da narrativa, com a reprodução de uma série de posts do blog O Mundo Perfeito, que a escritora manteve por anos e que depois daria lugar a outro blog, Novo Mundo. Incluía também uma entrevista em que a autora descreve o Caderno como uma espécie de confissão por interposta pessoa: “Passadas quase quatro décadas, está na altura de se começar a falar destas questões históricas com o devido distanciamento. O tempo de evitar já passou. Para mim passou. Do ponto de vista pessoal não havia motivos para evitar estas revelações. A minha luta interior, pessoal tinha acabado. Depois, e isto já é a minha costela cristã, que herdei do meu pai, a fazer das suas: ele não se confessou antes de morrer, e eu quero realizar essa confissão em seu nome, e ao fazê-lo, como sua principal acusadora, que fui, gostaria que também me fosse facultado o poder de o absolver. Quero acreditar que o tenho. Este livro serve para lhe dizer isso: ok, vai em paz, estás absolvido! Agora, cá me arranjo eu com o resto!”.

É também nesta entrevista que Isabela Figueiredo oferece a melhor síntese da razão que a levou a contar a história do fim do colonialismo português a partir da figura do seu pai: “O meu pai era o colonialismo”. Ao que acrescenta, numa espécie de reivindicação da infra-história familiar e afetiva como dimensão que, justamente por escapar aos esquemas dos historiadores, ilumina os fatos, mesmo os mais terríveis (“o meu pai era também a injustiça e a violência”), com outra luz: “Talvez eu não saiba bem, do ponto de vista histórico, o que foi o colonialismo — muito me escapará; mas sei muito bem o que foi o meu pai, o que pensava e dizia, e esse é um conhecimento prático do colonialismo que nenhum historiador pode deter, a menos que tenha vivido a mesma experiência”. 

Note-se, porém, que não se trata, aí, de reivindicar a experiência contra o conhecimento, mas de postular um conhecimento outro, que passa pela proximidade por vezes infernal (em complementaridade à distância histórica) e sobretudo pelo corpo. Daí que seja este um livro tão corpóreo, e mesmo, em várias passagens decisivas, tão abertamente erótico: nas recordações de acontecimentos como o comércio sexual escancarado entre homens brancos e mulheres negras, ou o fato de ter sido masturbada pela primeira vez por uma amiga, na infância, ou o abuso por um rapaz moçambicano negro, logo depois da independência. 

Mas há especialmente a atenção dada ao corpo do pai, observado e descrito em minúcias, e, antes de tudo, tocado, em contraste com a atitude com relação ao corpo da mãe: “O corpo da minha mãe era geométrico e seco. Não tinha autorização para lhe tocar. No corpo da minha mãe apenas me interessava o seu peito grande e mole. Que delícia haveria de ser ter autorização para lhe mexer, mamar, chupar por todo o lado. Apalpar com força. Sacudia?me, está quieta. Tocar na minha mãe era uma atitude pouco própria. O corpo do meu pai, pelo contrário, sólido, redondo, disponível, revelava-se uma colina cheia de arbustos e vegetação à qual podia trepar, e sentir, cheirar, beliscar, morder. Puxava?lhe os pelos, as unhas”, e por aí segue.

Da edição da Angelus Novus àquela da Caminho, temos, a introdução das “Palavras prévias”, espécie de prólogo que se inicia com um Gênesis pessoal que, na sua fórmula, junta mais uma vez, embora apenas nas palavras, aquilo que a história, que é queda, separaria para sempre: “No princípio eu era de carne e estava na terra” — e é precisamente esta carne que não voltará mais a esta terra (Moçambique). 

Tem-se aí uma antecipação daquela que é uma das cenas mais tocantes do livro, a cena na qual a menina Isabela pede para que a deixem ir comprar cerveja ou refrigerante, “ou pedaços de gelo ou enxofre ou óleo ou azeite”: “Podia, nesses recados, descalçar-me às escondidas no mato, e caminhar clandestinamente, sem sapatos, a ver se conseguia que os meus pés ficassem como os pés dos negros, de dedos abertos e sola dura, rachada. E gingava como uma preta, para experimentar o que era ser preta”. 

Há a atenção dada ao corpo do pai, observado e descrito em minúcias, e, antes de tudo, tocado, em contraste com a atitude com relação ao corpo da mãe

Detalhe inquietante: o desejo de fusão com a terra africana, que é, no fim das contas, a única terra natal que conhece, é também desejo de fusão com o corpo paterno: “O meu pai nunca amou outra terra. Nos meus sonhos, os caminhos são também, ainda, picadas de terra vermelha batida”. Não por acaso, o último capítulo é todo ele um exercício de nostalgia irremediável, porque todo retorno é, a rigor, impossível — mesmo que regressasse, como realmente faria após quatro décadas sem pisar em Moçambique, nem ela mais seria a mesma, e menos ainda a terra. 

Além disso, toda nostalgia, para os retornados, é também saudade do mal, dado que o terror dos negros é que garantia a felicidade dos brancos. Confundem-se aí casa e cova, saudade e podridão: “A que casa regressarás? Quanto tempo permanecerás sobre a cova onde o teu passado apodrece?”.

Neste mesmo prólogo, Isabela Figueiredo não apresenta mais seu livro como uma confissão, como fizera na entrevista da primeira edição, mas como uma carta dirigida a seu pai, “esta obra é a carta que quis deixar-lhe”. E, de fato, há neste livro algo da Carta ao pai kafkiana, carta nunca enviada ao destinatário, ou ainda, mais exatamente, algo daquele reencontro imaginário entre Drummond e a “sombra” do seu pai em que este “nada dizia”. Isto é, uma interlocução constitutivamente diferida, uma conversa necessariamente tardia, adiada para depois da morte, porque dependia desta para amainar o que na figura paterna era absoluto bloqueio, seja por treva, seja por esplendor. 

E, no caso do pai de Isabela, os dois aspectos eram indeslindáveis, sendo o realce do esplendor vital, ao lado da treva racista, uma aposta na complexidade: “A pele do meu pai, tostada, brilhava de brilho. E os olhos, de brilho. O sorriso do meu pai sorria sozinho. Sem nada mais escondido”. Como escrever ainda diante do pai, mas não podendo ser mais realmente ao pai — e não podendo evitar escrever também contra o pai?

No tocante a essa dinâmica de inícios antecipados e fins postergados, há outra novidade importante na edição de 2015, reproduzida na edição brasileira: o livro se abre e se fecha, agora, com palavras que não são da autora, mas, sim, de um poeta, o imenso Manuel António Pina. Como epígrafe das “Palavras prévias”, está o poema “A um homem do passado”; e, depois que a narrativa se encerra, há o poema “Algumas coisas”, que aqui aparece sem título, cujos últimos versos constatam que “saber é esquecer, e/ esta é a sabedoria e o esquecimento”.

Citados na íntegra, os poemas talvez nos ajudem a perceber que, embora o discurso sobre o colonialismo e o racismo tenha sido o que mais chamou a atenção do público e da crítica, os momentos decisivos do Caderno parecem estar nos parágrafos que, desviando da ênfase referencial característica das memórias, constituem genuínos poemas em prosa; é neles que melhor se fala, por meio da tensão significante própria da poesia, de integração e distância, de incorporação e desterro.

Na edição mais recente, há um novo extra, depois do segundo poema de Pina, um posfácio intitulado “O meu corpo e o dele”, que se inicia com a autora recordando que poderia ter nascido brasileira, já que, antes de ir para a África, o pai tentara migrar para o Brasil. Em seguida, enumera os seus conhecimentos das coisas brasileiras: a música, a literatura, as telenovelas, uma professora que veio de Curitiba, um namorado que veio de Rondônia. 

Mas o que importa é a parte supostamente dispensável que se segue a tal listagem. Nela, lemos: “O Caderno de memórias coloniais nunca estará acabado em mim. A minha memória tem um caráter fragmentado, muito sensível aos eventos do cotidiano. Há sempre alguma história que me vem à cabeça e que lamento não ter incluído na narrativa. Continuo a escrevê-lo, oportunisticamente, em tudo o que faço, com diferentes títulos, aproveitando o filão dos personagens, acontecimentos e ambientes que consigo raptar e sacrificar no seu altar. A minha vida e o Caderno confundem-se”. 

Quem leu A gorda, o romance lançado pela mesma Todavia no início deste ano (a edição portuguesa é de 2016), tem logo uma noção do que Isabela Figueiredo está falando. Mas, antes de qualquer expansão do Caderno para fora de si, há as expansões internas que essa pulsão escritural (e vital) determina, a começar pela constante permeabilidade entre texto e paratextos, assim como a dialética entre referencialidade e poeticidade.

É também por conta dessa vocação agregadora que o livro inclui várias fotos — a maioria delas, retratos da autora, mas não só: há vistas de Lourenço Marques, há retratos de grupo, há instantâneos da vida moçambicana. Curiosamente, porém, não há nenhuma foto do pai, que é o verdadeiro protagonista. Esta ausência torna-se ainda mais intrigante quando deparamos com o capítulo em que a narradora descreve justamente uma fotografia em que o pai apareceria. 

Talvez a razão dessa ausência se ilumine, analogicamente, no parágrafo que fala do túmulo que recebeu seu corpo: “O que dele sobra encontra-se arrumado numa gaveta do cemitério do Feijó. Quanto ao resto que lhe pertencia, não consegui arrumá-lo em lugar algum. Não cabe”. O pai é, na caracterização que dele faz Isabela, essa figura excessiva, de uma sublimidade devastadora — que, portanto, no essencial, não cabe nem numa gaveta de cemitério nem numa fotografia. 

O pai era essa figura excessiva, de uma sublimidade devastadora, que não cabe nem numa gaveta de cemitério nem numa fotografia

Nenhuma imagem estaria à altura daquilo que só com muita coragem as palavras tentam restituir. Só as palavras sem medo produzem as traições necessárias para que a história se conte e para que as tarefas estipuladas para a escrita — confissão, carta, algo mais? — se cumpram. Já eram aqueles poemas em prosa incrustados no texto — desde o primeiro capítulo, aliás — traições à narrativa sem as quais a narrativa não existiria como tal: não seria o Caderno, e as Memórias seriam outras. A ideia de traição é fundamental para se compreender este livro. 

Quando os pais decidem que a adolescente Isabela deve ser mandada sozinha para Portugal, em 1975, ela ouve, deles e de conhecidos, pedidos para que dê testemunho, na metrópole, das agressões horrendas agora praticadas pelos moçambicanos contra os colonos portugueses já despojados de todo poder: “Conta a verdade, lá na metrópole. Conta o que passamos por cá”. 

Em vez de testemunhar de acordo com tais solicitações e de corroborar o perverso raconto colonial, Isabela entrega a Portugal e ao mundo este livro: “A verdade era uma história muito longa e complexa, rica de narrativas encaixadas alternadas, simultâneas, polifônica”. A sua narrativa é outra, uma libertação da voz colonial e paterna. Mas jamais uma simples eliminação desta — o jogo é, aqui, sempre complicado e arriscado. O que chamamos “literatura” talvez sempre envolva a traição de um suposto dever de testemunho e a emergência de formas de contratestemunho.

Quem escreveu esse texto

Eduardo Sterzi

Crítico literário, escreveu A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria (Lumme).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.