Literatura brasileira,

Teatro de horrores

Romance passado nos anos 30 em cidade ficcional imersa na causa eugenista soa assustadoramente atual

01abr2024 | Edição #80
A escritora mineira Nara Vidal [Bruna Casotti/Divulgação]

Em 1845, o naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius venceu o concurso de teses promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cujo tema era “como se deve escrever a história do Brasil”. A tese, que fundamentaria os estudos historiográficos brasileiros dali em diante, embora aceitando o que chamava de “mescla de raças”, afirmava a superioridade branca, prevendo que “o sangue português, em um poderoso rio” deveria “absorver pequenos confluentes das raças índias e etiópicas”. Embora Francis Galton, primo de Charles Darwin, só viesse a publicar em 1869 o seu Hereditary Genius e apenas em 1883 cunharia o termo eugenia para as práticas de seleção artificial de grupos humanos, a ideia de uma raça superior a sufocar as demais já permeava as discussões e o imaginário e ganhou, ao longo dos séculos 19 e 20, estatuto de proposição científica válida, até se tornar política pública racista e restritiva em países tão diversos como Alemanha e Brasil.

É sob esse cenário histórico que Nara Vidal apresenta o seu mais novo romance, Puro, publicado primeiro em Portugal, pela Relógio D’Água, e agora, no Brasil, pela Todavia. A autora vem se debruçando ficcionalmente sobre o passado para uma compreensão geral de contextos políticos e sociais e, principalmente, investigando como essas circunstâncias afetam individualidades de personagens à margem das decisões de poder: mulheres, crianças, indigentes, escravizados, entre outros. Em Puro, a autora situa sua história no início dos anos 30 em um lugarejo perdido do interior de Minas Gerais onde coisas espantosas e terríveis acontecem com uma naturalidade desconcertante.

Puro — do grego pyr, fogo, que resulta na palavra latina purus, limpo pela ação do fogo — é tudo aquilo que se quer sem mácula, e é sob esse adjetivo que a autora constrói uma narrativa tensa, baseada em um argumento impiedoso e contraditório: o ideal de uma raça pura se concretiza quando as mãos se sujam de sangue. E, assim, o leitor é apresentado ao vilarejo de Santa Graça, “referência de virtude e limpeza no território nacional”, um lugar onde cidadãos (aparentemente de bem) e autoridades se unem em perversões e concepções criminosas de mundo, em que planos e atos cozinham lentamente em uma panela na qual vão parar todos aqueles que representem uma exceção à norma preestabelecida — e a norma é a pureza da raça branca. As exceções, o negro, o doente, o louco, o pobre. Santa Graça é um microcosmo que representa a vontade de aniquilação do outro, a mesma que se encontra na tese pretensamente histórica de Von Martius ou na compilação mais ideológica do que científica de Galton.

O romance transita entre gêneros: o teatral, a ficção de horror, o romance histórico e um flerte com a distopia steampunk, mais pela criação de um ambiente gótico que envolve a invenção de objetos sombrios do que pelas próprias regras do subgênero. 

Nara Vidal traz certa consciência de palco para as múltiplas vozes que atravessam a narrativa

Estudiosa da literatura inglesa, Nara Vidal vem, há anos, pesquisando a obra de Shakespeare e é instigante como traz certa consciência de palco para as múltiplas vozes que atravessam a narrativa. É possível, por exemplo, perceber reflexos das bruxas de Macbeth na criação das três irmãs que adotam e educam Lázaro. Assim, Puro apresenta personagens com alta carga dramática (e dramatúrgica) que pensam, dizem, fazem, comentam, explicam, olham, recolhem, voam, entre outras ações que nem sempre aderem umas às outras. Nem sempre o que se diz se faz. Nem sempre o que se faz obedece ao que se pensa. 

Os personagens, as mulheres velhas, o adolescente psicopata, o padre, o vendedor de enciclopédias, a mãe, o jovem portador de deficiência, o médico, a empregada doméstica, a cuidadora, entre outros, no centro do palco, expõem com crueza as próprias fraquezas, desamparos e inúmeras formas de aviltamento. A autora, com rigor, mantém as cordas que os sustentam retesadas e nisso eles articulam seu modo de estar no mundo sob uma luz simultaneamente ofuscante e terrível.

Pobres criaturas

Várias relações podem ser lidas a partir do projeto eugenista de Santa Graça, desde as relações de poder representadas pela igreja, pela medicina e pela polícia até as de afeto, que se dão unicamente entre os desvalidos daquela sociedade. No entanto, é na conexão entre Lázaro e Ícaro, dois opostos complementares, que a causa eugenista na qual a cidade está imersa ganha contornos mais claros. Não por acaso ambos são adolescentes: uma metáfora para a corporificação do que se espera de uma juventude dita normal e de outra que transgride apenas pela própria existência. Se em Lázaro o programa de pureza racial encontra não apenas eco, como uma adesão concreta, em Ícaro, um rapaz adoecido e fora dos padrões, tal projeto esbarra simultaneamente na crítica e impotência. Lázaro está ligado à morte e às catacumbas; Ícaro, ao voo. O universo de Frankenstein, de Mary Shelley, com suas experiências no limiar entre a vida e a morte, entre a ciência e o desejo de angariar uma potência divina, permeia o contrato entre os dois jovens.

Quem quer que tenha assistido a Pobres criaturas, de Yorgos Lanthimos, não deixará de perceber que o romance de Vidal pertence à mesma constelação. E é nela que brilha a ligação dos dois adolescentes, um vínculo feito aos gritos e impropérios que Lázaro lança ao vizinho, e pelo olhar testemunhal e assombrado de Ícaro, que vê e ouve melhor do que todos que estão ao redor:

Ícaro pensa: Lê muito, o Lázaro. O Boletim da Eugenia () Disse ainda que está preparando um esqueleto o mais próximo possível daquele humano.

Puro se inicia com um prólogo polifônico, em que trechos de documentos históricos dão conta de determinado ideário no qual a raça e as fantasias de origem repercutem ao longo dos tempos, de 1452 aos anos 1930. Embora o enredo seja circunscrito à década de 30, o romance soa assustadoramente atual, especialmente quando o noticiário se enche de manchetes que poderiam ser advindas daquele cenário ficcional. O que acontece em Santa Graça não fica em Santa Graça, nem acaba ali.

Quem escreveu esse texto

Micheliny Verunschk

É autora de O som do rugido da onça e Caminhando com os mortos (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.