Literatura brasileira,

A Amazônia fora dos trilhos

Márcio Souza desnuda o custo da ‘civilização’ em ‘Mad Maria’, que é reeditado em momento decisivo da região

24fev2023 | Edição #67

Antes de se embrenhar nas páginas de Mad Maria, o leitor é avisado de que “há muito de verdadeiro” no relato da construção da ferrovia Madeira-Mamoré nos primeiros anos do século 20, mas que o livro “não passa de um romance”. Ainda assim, se algo soar familiar, não será por engano, pois “o capitalismo não tem vergonha de se repetir”. Os tratores que derrubavam a floresta para estender em alguns quilômetros o delírio chamado Transamazônica ratificavam o comentário de Márcio Souza enquanto o manauara escrevia o romance, entre 1977 e 1980. Essa repetição persiste na Amazônia, a julgar por projetos como Belo Monte, a BR-319 e o avanço do garimpo que extermina flora, fauna e povos da floresta. Neste momento em que a região cresce em relevância no debate público, temos a sorte de reencontrar o livro, que acaba de ganhar reedição após quase vinte anos fora de catálogo.


Mad Maria, de Márcio Souza, acaba de ganhar reedição após quase vinte anos fora de catálogo

O plano de uma ferrovia que funcionasse como alternativa ao traiçoeiro rio Madeira no transporte da borracha remonta a fins do século 19, mas foram as escaramuças entre Brasil e Bolívia que impulsionaram o projeto. O Tratado de Petrópolis, assinado pelos dois países em 1903, reconheceu o Acre como território brasileiro e formalizou a nossa promessa de construir uma estrada de ferro que contribuiria para o escoamento da produção boliviana. Souza, aliás, estreou na literatura com o divertido Galvez, imperador do Acre (1976), romance folhetinesco que narra as desventuras do espanhol Luis Galvez Rodríguez de Arias nesse período.

Mad Maria, que carrega no título o apelido da locomotiva da Madeira-Mamoré, se passa em 1911, quando a construção da “ferrovia do diabo” já contabilizava quatro anos e milhares de operários — imigrantes aliciados primeiro nas periferias da Europa e do Caribe e depois na Índia — mortos em decorrência das condições desumanas de trabalho e de doenças como malária e beribéri. Para praticamente todos os envolvidos na obra nessa porção de Mato Grosso (hoje Rondônia), os 366 quilômetros de trilhos não ligavam Porto Velho a Guajará-Mirim, mas o nada a parte alguma, com uma parada no inferno no meio do caminho. A narrativa elege seis personagens para acompanharmos mais detidamente: o médico norte-americano Richard Finnegan e o engenheiro britânico Stephan Collier, funcionários da Madeira-Mamoré Railway Company; a boliviana Consuelo e um indígena karipuna que acabam envolvidos com a obra; o dono do empreendimento, o empresário norte-americano Percival Farquhar, e o então ministro da Viação e Obras Públicas, J. J. Seabra — esses dois verídicos.

Atmosfera de terror

Dividido em capítulos curtos que fragmentam a ação e alternam sempre o foco do narrador, o livro pode ser lido como um romance de aventura, mas sem qualquer leveza. A batalha política travada no Rio de Janeiro entre Farquhar e Seabra em ambientes luxuosamente decorados só atenua a atmosfera de terror deixada pelos eventos na frente de trabalho da estrada de ferro, que incluem decapitações, mutilações e execuções. Finnegan, recém-chegado ao canteiro de obras, conserva um certo idealismo. “É que aqui estamos vivendo uma espécie de guerra. É a civilização que está avançando, vencendo a barbárie. Numa guerra acontecem coisas ruins, em geral. Mas sempre o homem consegue fazer conquistas”, pensa o médico. Isso o contrapõe a Collier, engenheiro que trabalhou na construção do canal do Panamá para quem o progresso nada mais é que “uma política de ladrões enganando povos inteiros”. Não são apenas árvores que caem diante dos trilhos da Madeira-Mamoré, mas também qualquer noção edulcorada da humanidade, como atesta a transformação do médico ao longo da narrativa, que ecoa o Coração das trevas de Joseph Conrad.

Em uma entrevista concedida em 2016, Souza afirmou que Mad Maria “começou como uma espécie de subterfúgio para falar da Transamazônica, um dos projetos megalomaníacos da ditadura”. De fato, soa como um daqueles filmetes de propaganda do regime militar a declaração de Farquhar durante uma visita de parlamentares ao acampamento da empresa em Porto Velho: “Derrubamos árvores seculares, enfrentamos e civilizamos selvagens que mourejavam na idade da pedra; aqui estamos trabalhando com a disposição de dar até a nossa própria vida porque é assim o gênio americano”.

A ferrovia ligava o nada a parte alguma, com uma parada no inferno no meio do caminho

O embate entre homem e natureza, entre “civilização e barbárie” é proposto em diversos momentos, e não só na Amazônia. A um aliado, Farquhar desabafa: “Meus pedidos de concessões no Paraná estão paralisados. E por um motivo ridículo, dizem que há índios ali”. É verdade, porém, que o livro poderia dar mais espaço ao seu único personagem indígena. O trecho em que ele narra um mito karipuna que explica a razão das chuvas é de uma beleza singular e reluz em meio a tanta desgraça. É uma pena que, a partir de certo ponto, deixemos de acompanhar o que se passa na mente de Joe Caripuna, batizado assim por Finnegan.

Como os arquivos da Madeira-Mamoré Railway Company foram destruídos, Souza teve de “sair pelo mundo buscando informações”. Na mesma entrevista ele mencionou a Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, o Museu Britânico e a Biblioteca
do Congresso dos Estados Unidos como algumas das fontes de sua pesquisa. A formação em ciências sociais o moveu a sempre fundamentar bem o que escreve. Talvez por isso, Souza é um autor tão competente de romances históricos: além de Galvez e Mad Maria, que ganhou uma adaptação da Globo em 2005, merece lembrança a tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro, na qual o amazonense se inspira em O tempo e o vento de Érico Veríssimo para contar a “desformação” do Norte do Brasil no século 19.

Quando a Madeira-Mamoré foi enfim aberta, em 1912, o ciclo brasileiro da borracha já havia sofrido um duro golpe. O látex oriundo dos seringais da Malásia começava a invadir o mercado global, pavimentando a hegemonia inglesa no setor. Natimorta, a ferrovia passou para as mãos do governo na década de 30. Em 1972, foi desativada definitivamente. Naquele mesmo ano, o presidente Emílio Garrastazu Médici inaugurou o primeiro trecho da Transamazônica.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Magalhães

Jornalista, é editor de opinião do site Jota.

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.