As viajantes Egéria (c. século 4) e Jane Dieulafoy (sem data); acima, Annemarie Schwarzenbach (1939) e Jan Morris (2005) (Reprodução; Eugène Pirou/Biblioteca Nacional da França; Schweizerischen Nationalbibliothek/Reprodução; Jim Richardson)

História, Mulheres que correm o mundo,

Quebrar a maldição de Ulisses

De Egéria a Tamara Klink, autora portuguesa reúne biografias de mulheres viajantes em livro esclarecedor sobre a mobilidade feminina

21fev2025 • Atualizado em: 24fev2025 | Edição #91

A Odisseia é considerada por muitos o primeiro relato de viagem da chamada literatura ocidental. No clássico de Homero, Ulisses — ou Odisseu, no seu nome em grego —, depois de sobreviver à sangrenta Guerra de Troia, empreende uma longa viagem de retorno a Ítaca, sua ilha natal. Viagem esta envolta em perigos como ouvir o canto das sereias, romances com feiticeiras pouco confiáveis, ataques de um ciclope e o contato com os mais distintos povos e terras. Enquanto isso, sua esposa Penélope o espera e procura fugir das investidas de outros pretendentes.

Se Ulisses é o símbolo do aventureiro astuto e destemido, Penélope é o da fidelidade conjugal. É uma das histórias mais antigas da cartilha literária: ao passo que o homem sai de casa para viver aventuras, a sua fiel esposa fica confinada ao ambiente doméstico, esperando o retorno do amado.

A autora portuguesa Sónia Serrano (Ana Paganini/Divulgação)

É preciso, portanto, quebrar a “maldição de Ulisses”, como Sónia Serrano chamou esse tropo literário, e trazer luz às mulheres que se negaram a seguir os passos de Penélope. Em Mulheres viajantes, recém-publicado pela Tinta-da-China Brasil, a autora portuguesa escreve:

A mulher, na tradição das grandes epopeias literárias […] aparece como objeto de desejo, e não como a companheira ou, quase nem ousamos dizê‑lo, protagonista, da viagem.

O título vem preencher uma lacuna sobre o papel das mulheres na história das viagens, muitas das quais foram apagadas ou simplesmente ignoradas. Foi em fevereiro de 2010, ao organizar uma exposição sobre a escritora, viajante e fotógrafa suíça Annemarie Schwarzenbach (1908-42), que Serrano percebeu esse apagamento histórico.

A autora mostra como, apesar das dificuldades e dos obstáculos impostos pela sociedade, as mulheres sempre viajaram, trazendo biografias curtas e divertidas de uma gama de viajantes europeias e norte-americanas, todas brancas, de origens sociais, culturais e ideológicas diferentes. Além da cor da pele, o que tinham em comum, revela, era o ímpeto de partir. E seguindo o exemplo de algumas contrapartes masculinas, muitas viveram vidas cinematográficas e registraram por escrito suas andanças. Serrano escreve:

A verdade, porém, é que nenhuma destas mulheres teve uma vida insignificante. Era necessário coragem e força de vontade para afrontar a sociedade e insistir na aventura geográfica que, por motivos diversos, inquietou tantas mulheres cujo destino óbvio era o lar.

Tamara Klink (polaRYSE/Marin Le Roux/Divulgação)

A edição original de Mulheres viajantes é portuguesa; para a brasileira, Serrano preparou algumas boas surpresas. A melhor é a inclusão de Tamara Klink na seção “Contemporâneas”, logo depois de Jan Morris (1926-2020), Dervla Murphy (1931-2022) e Alexandra Lucas Coelho. Ela também menciona outras viajantes brasileiras que publicaram relatos, como Cecília Meirelles, Heloisa Schurmann e Martha Medeiros. Curiosamente, não fala de Lygia Fagundes Telles, que publicou Passaporte para a China (Companhia das Letras, 2011). O Brasil aparece ainda nos relatos de duas mulheres que fizeram a volta ao mundo de barco: a francesa Jeanne Baret (1740-1807) e a austríaca Ida Pfeiffer (1797-1858).

Novos olhares

Antes de entrar de cabeça nas protagonistas, Serrano faz reflexões mais do que bem-vindas sobre o ato de viajar. Para começar, questiona a razão de deixar o conforto do que é previsível e conhecido para ver novas paisagens com os próprios olhos. Este, aliás, é um dos tópicos de relatos de viajantes: o prazer de experimentar as coisas em primeira mão. “O que importa é o que se vê e como se vê, o processo de transformação mental que se opera e nos transforma”, conclui a autora.

Outro motivo para se deslocar — um dos mais antigos — era o da peregrinação religiosa. Serrano considera Egéria, que viveu no século 4, como uma das pioneiras, senão a primeira, a registrar suas viagens. Ao longo de três anos, Egéria foi da Península Ibérica a Jerusalém e descreveu esse trajeto em cartas. Mais adiante, Serrano conta como, com o passar do tempo, a viagem foi tomando um caráter de formação e educação de jovens aristocratas, para depois cair no gosto da burguesia e terminar na indústria de turismo conformada durante o século 19, época que também viu a explosão da mobilidade feminina.

Apesar de celebrar as viajantes, a autora não se furta de apontar a relação direta entre as viagens e as expedições imperialistas — indicando, inclusive, como grande parte delas aderiu às ideologias colonialistas, como as inglesas Gertrude Bell (1868-1926), uma das mentes por trás da criação do Iraque depois da Primeira Guerra Mundial, e Freya Stark (1893-1993), que chegou a trabalhar com propaganda (ou, como ela gostava de dizer, “persuasão”) pró-britânica durante a Segunda Guerra.

Serrano vem preencher uma lacuna sobre o papel das mulheres na história das viagens

Serrano também compara os guias de viagem e livros de conduta do século 19: os voltados para os homens forneciam dicas práticas de como recolher informação de caráter científico, enquanto os das mulheres buscavam assegurar o respeito às regras de decoro, submissão e passividade que elas deviam seguir no ambiente doméstico durante as andanças, um ato que em si violava a principal norma de todas: ficar confinada ao domínio da casa.

Mas, ao saírem, elas precisavam se preocupar com uma série de questões, desde a segurança pessoal e alimentação até saúde e hábitos de higiene. Menstruação, por exemplo, era um tópico tabu que quase nenhuma viajante abordava, com exceção, talvez, de Tamara Klink, que afirma ser bem mais confortável lidar com esses fluidos mensais sozinha em um barco do que no cotidiano em terra firme.

Os modos de locomoção e os locais para pernoitar também são questões cruciais para as mulheres, em especial em lugares onde poderiam ter que lidar com companhias masculinas indesejadas. Foi o caso da irlandesa Dervla Murphy, que viajou o mundo de bicicleta e que, numa aldeia turca, viu-se com um homem inclinado sobre ela e valeu-se da sua pistola para espantá-lo.

Na mala

A questão da indumentária traz sempre insights curiosíssimos sobre os costumes sociais que se esperavam das mulheres. Algumas, mesmo nos climas mais inóspitos, continuaram a sustentar os pesados trajes dos seus países de origem, caso da aristocrata conservadora Gertrude Bell que, mesmo no deserto do Levante, vestia tecidos caros e quentes e fazia com que criados carregassem sua bagagem. Já a britânica Mary Kingsley (1862-1900), uma das preferidas de Serrano, mesmo viajando pelas úmidas e quentes florestas tropicais do Congo, repleta de pudores, sempre manteve a gola do vestido fechada até o pescoço.

A famosa escritora Agatha Christie (1890-1976), além de publicar alguns dos romances policiais mais conhecidos do mundo, era também uma viajante inveterada. Em Na Síria, relato em que narra expedições arqueológicas ao lado do marido, há uma cena hilária em que tenta comprar roupas “simultaneamente adequadas às temperaturas abrasadoras da Síria e à compleição de uma ‘mulher cheia’”. Não encontrando nada que lhe servisse na “Nossa Seção de Cruzeiros”, Christie experimenta roupas saídas da “Nossa Seção Tropical”, composta dos mais diversos chapéus coloniais, casacos e saias de shantung, que são, segundo ela, “o vestuário próprio para as esposas dos construtores do império”.

A jornalista norte-americana Nellie Bly (1864-1922) conta em A volta ao mundo em 72 dias (1890) que muitos homens afirmavam que uma mulher não conseguiria fazer uma viagem pelo mundo em tão pouco tempo por causa da quantidade de peças que teria que levar. Na sua mala, Bly colocou apenas uma muda de roupa para deixá-la o mais leve possível. Esse episódio não foi mencionado no livro, mas é sintomático para pensar como o figurino era usado como uma justificativa para limitar a mobilidade não só corporal, mas geográfica das mulheres. No entanto, as roupas não detiveram as mulheres viajantes, pelo contrário. 

Houve as que escolheram se vestir com roupas femininas locais para passarem despercebidas, como fez a inglesa Rosita Forbes (1890-1967), que adotou o véu muçulmano para viajar pelo Egito e assumiu um disfarce para ficar incógnita: o da jovem viúva líbia Sitt Khadija. Era ainda bastante comum que algumas das viajantes adotassem peças masculinas para os deslocamentos. Calças, em vez de saias, vestidos e espartilhos, favoreciam o movimento. Foi o caso da arqueóloga francesa Jane Dieulafoy (1851-1916), que por influência do marido, o também arqueólogo Marcel-Auguste Dieulafoy, passou a usar apenas trajes masculinos. E não só nas suas expedições pela Pérsia, mas também na sua França natal, sendo a primeira mulher a receber autorização governamental para trajar “roupas de homem”, o que era proibido até então.

Ao mesmo tempo, essa prática as ajudava a se camuflar, chamando menos atenção por onde passavam. Quando habitou o Oriente Médio, a exploradora inglesa Lady Hester Stanhope (1776-1839), que se recusava a usar o véu, adotou a indumentária dos homens turcos, com calças bufantes e turbante. Era também uma forma de evitar atenção masculina indesejada.

Era comum que algumas viajantes adotassem indumentárias masculinas em seus deslocamentos

Houve ainda as que preferiram não só se vestir, mas se disfarçar de homem. A botânica francesa Jeanne Baret, homenageada na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris no ano passado, adotou o nome de Jean para poder viajar em um navio como assistente do marido, o também botânico Philibert Commerson — na época, a França proibia mulheres como parte da tripulação. Incógnita a maior parte da viagem, Baret tentou a todo custo manter o segredo, chegando mesmo a dizer ao capitão Bougainville que era um eunuco e por isso não fazia as suas necessidades junto aos outros marujos. Só foi desmascarada ao descer no Taiti, quando a população a apontou como uma mulher, na verdade, uma mahu, nome dado em algumas ilhas do Pacífico às pessoas do “terceiro sexo”.

Já a suíça Isabelle Eberhardt (1877-1904) levou seus disfarces masculinos às últimas consequências. Ela viveu até o fim da sua curta vida tanto como mulher quanto como Si Mahmoud Saadi, o seu alter ego muçulmano quando estava na Argélia — morreu aos 27 anos afogada em um vale na cidade de Aïn Sefra, onde vivia, quando os picos nevados do entorno derreteram e criaram uma violenta enchente. Eberhardt já estava acostumada a se vestir com roupas masculinas para circular fora de casa, e chegou a trabalhar no porto de Marselha como um jovem chamado Pierre. Quando sofreu um atentado em que quase foi morta na Argélia colonizada pela França, foi chamada a depor no tribunal e a grande questão com seu marido, o argelino Slimane Ehnni, era com que roupa ela apareceria no julgamento.

Em correspondências, Ehnni afirmava que ela deveria ir vestida com roupas de mulher europeia. Eberhardt retrucou que não tinha dinheiro para comprar tudo o que uma toilette feminina europeia necessitava, como peruca e anquinha. No final, foi vestida com trajes femininos argelinos, mantendo publicamente uma identidade de gênero mais próxima das normas, mas mostrando sua ligação com a cultura local. Conto esse episódio no livro que escrevi sobre a viajante: Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo, 2022).

Exploração

Gertrude Bell, em biografia escrita por Georgina Howell, já questionava se valeria arriscar tudo por uma aventura.

Não por causa do perigo, isso não me preocupa, mas… não é nada, a jornada pelo [deserto do] Nedj não possui qualquer vantagem prática, nem representa qualquer acréscimo de conhecimento. […] Receio, quando olhar para trás, vir a dizer: foi uma perda de tempo.

No passado, muitas viagens eram feitas para coletar informações e adquirir conhecimento acerca de regiões desconhecidas dos impérios europeus (e posteriormente norte-americano), com o intuito de dominar e colonizar. A ideia de aventura como conhecemos vem daí, e está ligada ao componente imperialista e colonialista. Quem nunca viu a imagem de um jovem rapaz girando o globo e colocando o indicador em algum lugar aleatório, abrindo–se à sorte? É um tropo colonialista de que o mundo está ali para ser “explorado”, mas não por qualquer um, em geral, por homens brancos.

A ideia de aventura como conhecemos está ligada ao componente imperialista e colonialista

Várias das mulheres viajantes partiram justamente nesse cenário de exploração, que ainda fascina muitos, mas que por vezes ignora a violência instrumentalizada que viabiliza essas expedições, em especial para as populações locais. E o livro acaba por reforçar alguns aspectos romantizados dessas viagens exploradoras, ainda que tenha consciência do contexto no qual foram feitas.

Enquanto isso, o turismo transformou o ato de viajar em mais uma prática consumista, quando aparentemente tudo já foi “conhecido” e “conquistado” — ideia questionada pela mais recente personagem de Sónia Serrano e mais jovem brasileira a atravessar o Oceano Atlântico sozinha, Tamara Klink. Durante uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2022 a velejadora lembrou que os seres humanos não conhecem quase nada do que está abaixo da superfície do oceano e ainda há muito a se descobrir no nosso próprio mundo.

Junto com ela estava a francesa Nastassja Martin, que afirmou que a “aventura” como a conhecemos precisa ser ressignificada. Para a autora de Escute as feras (Editora 34, 2021), a aventura que interessa agora não é tanto exterior, mas interior, narrando uma metamorfose. Já os relatos de viagem, defende, precisam mudar, colocando como narradores as vozes que foram silenciadas, como os povos colonizados. Que inspiradas pelas viajantes do passado as futuras escritoras tragam novos olhares para seus relatos.

Nota do editor

A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #91 em março de 2025.

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