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Fome de Brasil

No ano de seu centenário, Antonio Callado ganha antologia em que narra, entre o desencanto e a esperança, os males do país

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Em 1976, o padre João Bosco Burnier, que se dedicava aos povos indígenas e trabalhadores rurais na região do Araguaia, foi executado por um soldado quando tentava salvar duas mulheres de uma sessão de tortura. Abafado pelo regime militar e pouco noticiado, o caso chamou a atenção do jornalista e escritor Antonio Callado, que visitou o local dois anos depois. Ao descrever a viagem em uma crônica para a revista IstoÉ, Callado partiu do episódio para fazer uma ampla reflexão sobre a barbárie brasileira. Do massacre de opositores da ditadura ao genocídio dos índios, do pau-de-araxra ao Esquadrão da Morte, diz Callado, “já dava para escrever uma história do mal no Brasil”.

Antonio Callado foi um obstinado cronista dos nossos males históricos. Em romances, reportagens, artigos e peças de teatro, denunciou a persistência da desigualdade social, a perseguição aos desfavorecidos, o autoritarismo dos governantes e a gula das elites nacionais. No ano que marca o centenário de Callado, morto em 1997 aos 80 anos, seu olhar lúcido e indignado reaparece na antologia O país que não teve infância, organizada pela jornalista Ana Arruda Callado, sua companheira por mais de duas décadas. O livro reúne 86 crônicas da coluna “Sacada”, que ele assinou na revista IstoÉ entre 1978 e 1982.

Era o tempo da abertura política, que Callado chamava, com o ceticismo e a ironia habituais, de “hora do recreio”. As crônicas flagram o autor entre o desencanto com os efeitos duradouros da repressão e a esperança na promessa de democracia, preocupado com os obstáculos perenes para a transformação do Brasil num país mais justo. “Pela brutalidade com que tratamos os pobres, os menores abandonados, os índios, os grevistas, damos a impressão de viver num limbo pré-histórico”, lamenta ele em uma crônica publicada em 1979. As sacadas de Callado continuam a dizer muito sobre esse limbo onde ainda vivemos.

Depois de ter tido os direitos políticos cassados por dez anos, em 1969, e de chegar a ser proibido de exercer o ofício de jornalista, ele aproveitou a “hora do recreio” para denunciar o mal intrínseco da ditadura: a adoção da tortura como “sistema de governo”. E sugere que um dos desafios da redemocratização seria neutralizar a herança violenta de um regime que, ao transformar os porões em “departamento do serviço público”, promoveu a “aceitação da bestialidade” em toda a sociedade. Até quando seria o Brasil, na definição de Callado, “um país que só acredita de fato na força bruta, no tacão da bota, no eletrodo”?

Brasil de corpo inteiro

As crônicas apontam também a repressão no campo, que procurava quebrar o movimento pela reforma agrária, tema que mobilizou o autor ao longo de toda a carreira. Acompanhou momentos cruciais da luta pela terra no Brasil, desde a formação das Ligas Camponesas, na série de reportagens Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco (1960), até os primórdios do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pano de fundo do livro Entre o deus e a vasilha (1985). “A história do Brasil que nos retrataria de corpo inteiro seria a da nossa mentalidade em relação à terra, à posse da terra”, escreve numa crônica de 1982. “A história íntima do país é a de uns poucos moradores que não querem se mover nem para dar água aos sem-terra.”

A ditadura só fez aumentar a concentração da terra e da renda, alertava Callado. Um dos alvos constantes do regime militar foram os territórios indígenas, retalhados para atender a empreiteiras e ao agronegócio. Militante de longa data da causa indígena, Callado registrou no livro-reportagem Esqueleto na Lagoa Verde (1953) o trabalho dos irmãos Villas-Bôas pela criação do Parque do Xingu, que em 1961 viria a ser a primeira reserva homologada pelo governo federal. Por isso, indignava-se ao ver os índios privados de suas culturas e riquezas. Levados a trabalhar para os novos donos de suas terras, passavam “da mata grande para a senzala”, escreveu em 1979.

Callado acreditava que os intelectuais tinham um papel singular na transformação da sociedade. Numa crônica de 1981, afirma que a responsabilidade do escritor “nos países incertos de si mesmos, como o Brasil”, é maior que a dos cidadãos em geral, e que as obrigações do “guardião das palavras da tribo” são “diferentes, muito mais severas”. Teve essa consciência desde cedo, quando começou a colaborar com a imprensa carioca, em 1937, aos vinte anos. Em 1941, transferiu-se para Londres, de onde cobriu a Segunda Guerra Mundial para a BBC. Voltou em 1947 com um sentimento que descreveu como “fome de Brasil”.

Lançou-se então em viagens pelo país, com incursões frequentes à Amazônia e ao Nordeste, onde as contradições nacionais lhe pareciam mais expostas. Além das reportagens e crônicas, o confronto com a realidade brasileira inspirou obras clássicas — como o romance Quarup (1967) e a peça Pedro Mico (1957). Em O país que não teve infância, o mergulho no país rendeu cenas comoventes, como quando recebe um cartão de boas-festas de uma associação de lavradores, ou quando diverte crianças indígenas em uma lagoa do Xingu fingindo-se de monstro, mesma brincadeira que fazia com os netos.

Com olhar ao mesmo tempo severo e amoroso, o cronista dos males brasileiros é também o cronista da resistência. Na antologia, Callado exibe sua galeria pessoal de heróis nacionais, unidos pela coragem que tiveram em tempos hediondos. São líderes populares como Francisco Julião e Miguel Arraes, religiosos engajados como d. Pedro Casaldáliga e d. Hélder Câmara, artistas e pensadores como Augusto Boal e Nise da Silveira.

Nesse panteão também há lugar para cidadãos comuns, como os do povoado de Ribeirão Bonito, no Mato Grosso, onde o padre João Bosco Burnier foi assassinado. Depois da missa de sétimo dia, revoltados, os moradores botaram abaixo a cadeia onde ocorreu o crime, e no lugar dela ergueram uma igreja, que se tornou palco de uma festa anual em memória do mártir. No exemplo desses personagens célebres ou anônimos que passaram da indignação à ação, Callado enxergava o caminho que poderia levar o brasileiro “a transformar-se e, naturalmente, a transformar o mundo ao seu redor”. 

Quem escreveu esse texto

Guilherme Freitas

É professor da ESPM-Rio e editor assistente da revista Serrote.

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.