Especial Pantanal, Literatura,

Um jaguar na encruzilhada

Permeado de mistérios e elementos maravilhosos, romance de escritora mato-grossense falecida em 2005 é intersecção de gêneros

01ago2022 | Edição #60

Quantas sombras cabem em um determinado espaço? Quantas tragédias uma casa pode guardar em seus recantos? Quanto sangue há em seus desvãos, quantos gritos calam suas portas fechadas? Perguntas assim frequentam a imaginação de ficcionistas há séculos. Autoras e autores de diversas expressões literárias se dedicaram a elas, em um movimento do qual resultam as chamadas histórias de casas assombradas. Tamanha é a recorrência do tema que ele se tornou uma convenção narrativa intitulada locus horribilis, ou “lugar horrível”: espaços (casas ou não) opressivos que afetam, quando não determinam, o caráter e as ações das personagens que lá vivem. Esses territórios estão por toda a literatura, mas têm origem definida: as histórias góticas, que, em pleno século das Luzes, o 18, apostaram nas sombras e nas fantasmagorias para apresentar uma visão de mundo sinistra, pessimista. 

A imaginação da autora viceja como as paisagens naturais do Pantanal, onde se situa parte de sua obra

O romance A dança do jaguar, da mato-grossense Tereza Albues (1936-2005), tem em seu núcleo um verdadeiro locus horribilis: o Solar Maltesa, uma casa vitoriana de três andares para onde se muda a pintora Nayla Malloney, protagonista e narradora da história. Ela ocupa o segundo e o terceiro andares; no primeiro, vive o misterioso Tristan O’Hara — espécie de fantasma vivo, sempre mencionado e quase nunca mostrado, que assume contornos mais nítidos conforme a história se desenvolve e o passado se revela. Por seu caráter insondável e ameaçador, Tristan remonta ao anti-herói Heathcliff, de O morro dos ventos uivantes (Emily Brontë, 1847), um dos maiores personagens da tradição gótica. Outra característica os assemelha: tanto um quanto o outro são responsáveis por aterrorizar os espaços que habitam. 

No início, porém, o Solar Maltesa é mais mágico do que aterrorizante: Nayla chega à casa como se tivesse cruzado um portal, adentrando um mundo de sonho e fantasia. Sua inspiração artística ali floresce com mais vigor, objetos mágicos surgem em seu caminho e ela se vê cercada por personagens um tanto mitológicos, como o metamórfico Ariel Kizuo, o monge chinês Xu-Yi-Zhou e a senhora S., uma vizinha de Nayla com quem Albues arma um instigante jogo de espelhamentos/duplicidades em relação à protagonista. 

Não por acaso, é nesse território do maravilhoso que surge o suposto príncipe encantado da história: Valério Randall, o marchand de arte por quem Nayla se apaixona. Mas o amor dos dois é muito mais das feras do que das fadas. É sensual e violento, pois aqui assistimos à dança de um jaguar; e é esse amor que passa a conferir tonalidades mais sinistras à história. Aos poucos, a protagonista se vê envolvida não apenas com Valério, mas com o espectro da também pintora Florence Maltesa, a herdeira do solar e antiga paixão de Tristan O’Hara que desaparecera anos antes. A partir desse ponto, os elementos do gótico se misturam aos mecanismos da narrativa policial, em um hibridismo característico da literatura atual.

Força da natureza

A prosa de Albues também não deixa dúvidas: em A dança do jaguar, estamos no século 20, e não mais nos tempos de Horace Walpole. Consciente de seu próprio artefato ficcional, a autora vai marcando a história com acenos machadianos. São antecipações e avisos de que algo se arma nos bastidores, inclusive com ela própria figurando no enredo como a “fiandeira” mencionada por Nayla, tecendo-lhe o destino. Contudo, tal procedimento diminui a força da narrativa; por se repetir em excesso, denota pouca confiança nas capacidades dos leitores. 

Há outro pecado do exagero na narração de Albues, os longos apartes. São digressões e monólogos interiores marcados por muitas indagações — técnica arriscada, pois, quando utilizada além da medida, dispersa a beleza lírica de passagens anteriores. A fruição da trama ainda se beneficiaria de um tratamento diferente dispensado às metáforas: a autora as constrói e desfaz com rapidez excessiva.

A despeito desses problemas, há engenho e boas surpresas em A dança do jaguar. A condução é firme, a reviravolta é bem arquitetada. Há também magia: cenas fantásticas que cintilam no ambiente cada vez mais sombrio do Solar Maltesa. Ênio Silveira, célebre editor que publicou os primeiros livros de Tereza Albues, via-a como uma “força da natureza”: de fato, a imaginação da autora parece vicejar como as paisagens naturais do Pantanal, onde se situa boa parte de sua obra, em especial os primeiros romances, e que aqui marca presença por ser o habitat do jaguar, ou da onça-pintada. E ainda que essa narrativa se passe em São Francisco (cidade na qual Albues morou por anos, além de Nova York), nota-se nela a potência criativa de uma autora sensível às planícies pantaneiras — esse inesgotável manancial de assombros e maravilhas para tantos ficcionistas do nosso Centro-Oeste.

O especial Pantanal tem o apoio de Documenta Pantanal

Quem escreveu esse texto

Oscar Nestarez

Escritor, publicou Bile negra (Pyro).

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.